Não há surpresas ou novidades quando o pastor Silas Malafaia fala.
Cada vez em que é entrevistado ou empresta sua voz para algum programa
de natureza política ou religiosa, assistimos e ouvimos o mesmo desfile
de preconceitos, inverdades e sofismas. Bem sabemos que os disparates e
infâmias habituais de sua retórica convicta e fundamentalista enojam e
irritam. Entretanto, convém não perder a capacidade, e a paciência, de
nos chocarmos e nem “acomodar com o que incomoda”, como diz a letra de
uma bela canção.
E por que não devemos nos calar ou tão simplesmente dar de ombros,
ignorar a ignorância? Porque o silêncio nos torna cúmplices da
ignorância. Aliás, se é verdadeiro que em certas circunstâncias o
silêncio pode ser mais eloquente do que a palavra, em outras o silêncio é
o adubo fértil para o crescimento da ignorância e da barbárie. Por
isso, cabe não calar. Falar a verdade ao poder e criticar os
preconceitos é combater incansavelmente contra o silêncio que naturaliza
ambos.
Voltemos, pois, a Malafaia, este paladino e missionário do
ódio. Coube a jornalista Marília Gabriela a hercúlea tarefa de suportar o
discurso de Malafaia, entrevistando-o em seu programa “De Frente com
Gabi”. E se a jornalista por vezes se exaltou com as afirmações do
pastor ou por este a atropelá-la em suas perguntas e raciocínios, penso
que ela aguentou em nome de um compromisso com a verdade e com a
sensatez; afinal, a mentira para ser desmascarada deve ser antes
exposta.
O que disse o pastor desta vez? Num exemplo cristalino de homofobia
cordial, disse que amava os homossexuais da mesma forma como ama os
bandidos: “Eu amo os homossexuais como amo os bandidos”. Este amor
misericordioso que Malafaia afirma cultivar não passa de um ardil
ideológico que finge aceitar e acolher mas apenas para tentar
“corrigir”, “reorientar”, “ajustar”. Em outras palavras, domesticar e
“curar” a homossexualidade segundo os “meus valores” e “minha verdade”.
Não creio que os homossexuais precisem deste amor denegador da liberdade
e da autonomia individual. O amor de Malafaia é um amor tutelar, de
correção moral e interesseiro.
A correlação valorativa entre “homossexuais” e “bandidos” é odiosa.
Ela objetiva reforçar o vínculo entre homossexualidade e desvio,
sustentando, sorrateiramente, a ideia de que a homossexualidade assim
como o fenômeno da delinquência atenta e prejudica a sociedade. Em
outros termos, a analogia diz o seguinte: os bandidos existem, são um
fato social, mas precisamos mudá-los, puni-los e “ressocializá-los” para
que não lesem a sociedade. Sem afirmar diretamente, Malafaia pensa o
mesmo sobre os homossexuais; eles são um fato social, existem, mas
precisamos corrigi-los para que não lesem à família, os bons costumes,
etc..
A piedade e a compreensão amorosa do pastor são, com efeito,
estratégias retóricas para a normalização pastoral e sexual. Nesse
ponto, Malafaia se serve abundantemente de preconceitos e concepções de
gênero, família e sexualidade que não se sustentam, nem do ponto de
vista do conhecimento científico nem socialmente – haja vista todas as
transformações culturais, sociais e jurídicas das últimas décadas.
Tentando atenuar os aspectos mais, digamos, etnocêntricos e
interessados de suas opiniões, o pastor recorre a ciência em vez da
religião pura e simplesmente; refugia-se em argumentos
pseudo-científicos e pesquisas que nunca cita a fonte, Malafaia busca,
com isso, preencher de autoridade, poder de verdade e neutralidade os
seus preconceitos e sua intolerância. À bem da verdade, Malafaia
achincalha a ciência – mais uma razão para não nos calarmos.
Quando prenuncia, num claro julgamento moral e especulativo, que a
formação de famílias homoparentais ou a criação de filhos por casais
homossexuais terá consequências sociais e psicológicas nefastas e
nocivas, Malafaia esquece que, segundo Freud, a família
independentemente das orientações sexuais do casal é a origem e o palco
da maior parte dos problemas emocionais e psíquicos por conta dos
conflitos subjetivos que envolvem a constituição do eu nas relações e
identificações familiares. Aliás, a grande maioria das psicoses
estudadas por Freud era produto das dinâmicas emocionais, repressivas e
traumáticas da família vitoriana.
O artigo “Desconstruindo preconceitos sobre a homoparentalidade” dos
psicólogos Jorge Gato e Anne Maria Fontaine cita diversos estudos
psiquiátricos, psicológicos, sociológicos e antropológicos que desmentem
as pré-noções estigmatizantes de que a criança em famílias
homoparentais sofreria danos em seu desenvolvimento psicológico. Todos
os estudos mencionados pelos autores foram unânimes na constatação da
não-existência de uma excepcionalidade ou de diferenças substanciais que
tornem a homoparentalidade especialmente danosa para o desenvolvimento
emocional, cognitivo e sexual da criança em comparação às famílias
heteroparentais. Inclusive, em algumas casos, de mães lésbicas, por
exemplo, estudiosos verificaram um ambiente familiar no qual as crianças
sentiam-se mais a vontade, livres e confiantes em discutir temáticas de
caráter emocional e sexual, ocasionando um efeito positivo no
desempenho escolar.
Em contrapartida, as dificuldades das crianças criadas em famílias
homoparentais aparecem exatamente no plano das relações sociais, ou
seja, obstáculos na aceitação e reconhecimento social por conta de
contextos sociais discriminatórios como a escola. Mas, ainda assim, os
estudos mostraram variações importantes nesse ponto a depender do país e
região.
O que podemos concluir com os resultados das pesquisas científicas é
que os problemas que estas crianças enfrentarão no futuro se devem
precisamente de pessoas como Malafaia. Quer dizer, do preconceito, da
intolerância e da ignorância que Malafaia pratica, semeia e propaga.
Portanto, o que atrapalha e lese o desenvolvimento psicológico e
social é o preconceito e a intolerância, os quais Malafaia transforma em
bandeira. As religiões se tornam nocivas à humanidade quando são
eivadas de ódio e ignorância por profetas fundamentalistas e
intolerantes que alimentam incompreensões.
Por mais que canse, devemos continuar a combater e criticar os
absurdos odiosos do pastor Malafaia, pois ele, por sua retórica e
status, goza de um poder de interferência na vida social capaz de
favorecer violências simbólicas e físicas contra grupos e minorias
sexuais que já tem de enfrentar práticas homofóbicas em seu cotidiano.
Se não quisermos cair presas da retórica do preconceito e sua violência
simbólica, devemos sempre exercitar a crítica pública. É com ela que
podemos cultivar uma cultura de direitos humanos e de reconhecimento
capaz de transformar uma esfera pública refratária ao debate racional
dos direitos e das violências sofridas por minorias e grupos vulneráveis
em uma esfera pública refratária a estupidez, a barbárie e ao
preconceito. Para essa transformação ocorrer, então, é preciso jamais se
cansar de se contrapor ao preconceito.
Da Carta Potiguar