Se eu pudesse, mudava minha vida toda; não que ela esteja ruim, mas só para ver que ela pode ser diferente.
Se eu pudesse, me desfaria de muitas coisas, da minha casa e de quase
todas as roupas. Afinal, quem precisa de mais do que dois pares de
sapatos, dois jeans, quatro camisetas e dois suéteres, sobretudo quando
anda pensando em mudar de vida?
Se eu tivesse muitas joias, enterrava todas elas na areia da praia para
que um dia alguém enfiasse a mão brincando, assim para nada, e tivesse a
felicidade de encontrar um colar de brilhantes. Afinal, dá para viver
sem, não dá?
Das algumas garrafas de champanhe guardadas cuidadosamente, na
horizontal, daria para abrir mão, sem nenhuma possibilidade de remorso
futuro; champanhe, além de engordar, não passa de um espumante metido a
alguma coisa, e nem barato dá, de tão fraquinho que é. Dos vinhos, mais
fácil ainda; nada melhor do que o velho e bom uísque, com o qual sempre
se pode contar.
E as amizades? Aliás, as amizades, não: as relações. Ah, se tivesse
coragem, compraria um novo caderno de telefones e passava só aqueles
pouquíssimos nomes que realmente têm algum significado, e que são tão
poucos que nem precisaria escrever. Guardaria todos de cor, não na
cabeça, mas no coração, e um dia me esqueceria de todos eles.
Se eu pudesse, iria recomeçar a vida em outra cidade, talvez em outro
país, para nada, só para começar tudo do zero. Para às vezes sofrer
bastante, pensando que poderia ter tido mais juízo e não ter feito
tantas bobagens, pois se tivesse errado menos poderia ter sido mais
feliz -talvez. Mas alguém tem o poder de fazer alguém sofrer, ou a
capacidade do sofrimento é um bem pessoal e intransferível?
Se alguém conseguisse ainda me fazer sofrer, seria um acontecimento a ser festejado.
Se eu pudesse -e não tivesse tantos compromissos-, seria vegetariana,
passaria as noites em claro e teria muito amor pelos animais e pelas
crianças. Mas como tenho horror a qualquer bicho e nenhuma paciência com
criancinhas, a não ser com meus bichos e minhas crianças, vou ter que
atravessar a vida levando essa pesadíssima cruz -afinal, ficou combinado
que de certas coisas não se pode não gostar, e se não se gostar não se
pode dizer, que vida.
Se pudesse, largaria tudo e iria embora para um lugar onde ninguém me
conhecesse, onde não teria passado nem futuro; para um lugar esquisito
no qual não entenderia a língua do povo nem ninguém entenderia a minha.
Seríamos todos, assumidamente, estranhos -como somos no edifício onde
moramos, no local de trabalho, dentro de nossa família. Ou você pensa
que alguém conhece alguém porque dá beijinhos no elevador?
Se eu pudesse, quando acordasse hoje de madrugada saía descalça só com
um casaco em cima da pele e ia molhar os pés na água do mar, sozinha.
Depois, ia tomar um café no balcão de um botequim, como fazem os homens.
Se eu pudesse, rasgava os talões de cheques, cortava os cartões de
crédito com uma tesoura, fazia uma linda fogueira com os casacos de pele
e ia saber como é que vivem os que não têm, nunca tiveram e nunca vão
ter nada disso. E aproveitava o embalo para cortar os fios dos
telefones, jogar o celular na tela da televisão e o computador pela
janela -deve ser lindo, um computador voando.
Se eu pudesse, raspava a cabeça, acendia dois cigarros ao mesmo tempo e
tomava uma vodca dupla, sem gelo, num copo de geleia. E pegaria uma
gilete para picar em pedacinhos a carteira de identidade, o passaporte e
o CPF, sem pensar um só instante nas consequências e sem um pingo de
medo do futuro.
E jogava na lata de lixo meus lençóis, meus travesseiros de pluma, meu
cobertor e engolia minhas pestanas postiças, só para aprender que a vida
não é só isso.
Se eu pudesse, esquecia o meu nome, o meu passado e a minha história e ia ser ninguém. Ninguém.
Se eu pudesse, não, se eu quisesse. Pois é, tem dias que a gente está assim, mas passa.
Danuza Leão, jornalista e escritora, aborda temas ligados às
relações entre pais e filhos, homens e mulheres, crianças, adolescentes,
além de outros assuntos do dia-a-dia. Publicou seu primeiro livro em
1992. Escreve aos domingos na versão impressa do caderno "Cotidiano".