Quando nascemos o mundo já está pronto. A língua está pronta. Os sentidos que as palavras têm ou o peso que elas carregam tb estão dados antes mesmo de nascermos.
Os gays, por exemplo, vivem num mundo de ofensas. A linguagem os cercam. O mundo os insulta. As palavras do mundo político, médico, jurídico atribuem a cada um deles e a toda coletividade um lugar de inferioridade na ordem social.
Mas essa linguagem os precedeu: Esse mundo já está dado e se apodera deles antes mesmo de eles se reconhecerem como tal.
Tudo isso quer dizer, em outras palavras, que existimos não porque somos reconhecidos mas porque somos reconhecíveis.
Cada sujeito homossexual tem uma história particular, mas ela não está desvinculada desse coletivo que é constituído pelos outros sujeitos que são assujeitados pelo mesmo processo de inferiorização.
O homossexual nunca é um indivíduo isolado, até quando se acha sozinho no mundo ou quando, depois de entender que não está, busca separar-se dos outros para escapar, precisamente, à dificuldade de se assumir como pertencente a esse conjunto estigmatizado, embora só a consciência reflexiva e crítica desse pertencimento possa permitir que ele se libere tanto quanto for possível fazer.
O coletivo existe independentemente da consciência que dele podem ter os indivíduos e independentemente da vontade destes.
Assim que entra num bar, assim que paquera num parque ou num lugar de encontros, assim que frequenta os lugares da sociabilidade gay, assim que abre um livro e se reconhece (e por isso mesmo que escolhe ler tal ou tal livro: senão, como explicar que os homossexuais leiam Proust, ou Genet, até quando não leem nunca literatura?), um gay se liga a todos aqueles que cumprem esses mesmos gestos, no presente, mas tb a todos aqueles que, no passado, criaram esses lugares, todos aqueles que os frequentaram antes dele, às tenacidades individuais e coletivas que os impuseram e os mantiveram contra a repressão, aos esforços e às coragens que foi preciso empregar para que existissem numa literatura e uma reflexão homossexuais.
Seja consciente ou não, aceita ou não, a subjetividade de um gay é imposta por um mundo e um passado que ele talvez ignore, mas que funda um pertencimento coletivo que a visibilidade contemporânea só fez manifestar à luz do dia.
Já há linguagem quando chego ao mundo. Já há papeis sociais que são designados por palavras, e principalmente por injúrias.
No caso dos negros não é diferente. Quando se trata da cor da pele, designa um estigma visível. É possível alguém esconder que é homossexual, mas esconder a cor da sua pele...
É possível, entre 10 e 15 anos de idade, alguém não saber que é - ou que será - homossexual, mas aos 10 anos, quem é negro sabe disso e, desde a infância, experimenta todos os dias o que isso significa em sociedade ocidentais, raramente isentas de todo o racismo.
No entanto, essa diferença não é absoluta, porque um jovem negro pode ignorar que é negro antes de ser confrontado com a violência do preconceito racial (em casa por exemplo, longe de experimentar seu ser para o outro).
Um jovem negro, por exemplo, tem todas as chances de viver numa família negra e, portanto, ser apoiado, na medida em que é vítima do racismo, ao passo que um jovem gay tem pouquíssimas chances de viver numa família gay ou lésbica, e o estigma ou a injúria que lhes são enviadas pelo mundo exterior atravessam igualmente o meio no qual vive.
O que engendra nos jovens gays um silêncio, uma prática da dissimulação e talvez produza traços psicológicos muito particulares pelos quais os homossexuais puderam ser definidos na literatura e no cinema (sorrateiros, mentirosos, traidores), que remetem, é claro, à percepção homófoba da homossexualidade, mas tb a certas realidades produzidas pela homofobia e a dissimulação de si que ela implica, e que seria absurdo querer negar. Em todo caso, as infâncias gays e lésbicas são fundamentalmente cheias de segredos, e isso não pode deixar de ter efeitos profundos e duráveis na personalidade deles.
A partir do texto de Didier Eribon - Reflexões sobre a questão gay.