segunda-feira, 23 de maio de 2011

Sobre os "erros" em livro didático - Sírio Possenti (Texto)

Aceitam tudo

Reprodução
Trecho do livro Por uma Vida Melhor apresenta a pergunta posso falar 'os livro'?
 
Trecho do livro "Por uma Vida Melhor" apresenta a pergunta "posso falar 'os livro'?"

Sírio Possenti
De Campinas (SP)
De vez em quando, alguém diz que lingüistas "aceitam" tudo (isto é, que acham certa qualquer construção). Um comentário semelhante foi postado na semana passada. Achei que seria uma boa oportunidade para tentar esclarecer de novo o que fazem os linguistas.
Mas a razão para tentar ser claro não tem mais a ver apenas com aquele comentário. Surgiu uma celeuma causada por notas, comentários, entrevistas etc. a propósito de um livro de português que o MEC aprovou e que ensinaria que é certo dizer Os livro. Perguntado no espaço dos comentários, quando fiquei sabendo da questão, disse que não acreditava na matéria do IG, primeira fonte do debate. Depois tive acesso à indigitada página, no mesmo IG, e constatei que todos os que a leram a leram errado. Mas aposto que muitos a comentaram sem ler.
Vou tratar do tal "aceitam tudo", que vale também para o caso do livro.
Primeiro: duvido que alguém encontre esta afirmação em qualquer texto de linguística. É uma avaliação simplificada, na verdade, um simulacro, da posição dos linguistas em relação a um dos tópicos de seus estudos - a questão da variação ou da diversidade interna de qualquer língua. Vale a pena insistir: de qualquer língua.
Segundo: "aceitar" é um termo completamente sem sentido quando se trata de pesquisa. Imaginem o ridículo que seria perguntar a um químico se ele aceita que o oxigênio queime, a um físico se aceita a gravitação ou a fissão, a um ornitólogo se ele aceita que um tucano tenha bico tão desproporcional, a um botânico se ele aceita o cheiro da jaca, ou mesmo a um linguista se ele aceita que o inglês não tenha gênero nem subjuntivo e que o latim não tivesse artigo definido.
Não só não se pergunta se eles "aceitam", como também não se pergunta se isso tudo está certo. Como se sabe, houve época em que dizer que a Terra gira ao redor do sol dava fogueira. Semmelveis foi escorraçado pelos médicos que mandavam em Viena porque disse que todos deveriam lavar as mãos antes de certos procedimentos (por exemplo, quem viesse de uma autópsia e fosse verificar o grau de dilatação de uma parturiente). Não faltou quem dissesse "quem é ele para mandar a gente lavar as mãos?"
Ou seja: não se trata de aceitar ou de não aceitar nem de achar ou de não achar correto que as pessoas digam os livro. Acabo de sair de uma fila de supermercado e ouvi duas lata, dez real, três quilo a dar com pau. Eu deveria mandar esses consumidores calar a boca? Ora! Estávamos num caixa de supermercado, todos de bermuda e chinelo! Não era um congresso científico, nem um julgamento do Supremo!
Um linguista simplesmente "anota" os dados e tenta encontrar uma regra, isto é, uma regularidade, uma lei (não uma ordem, um mandato).
O caso é manjado: nesta variedade do português, só há marca de plural no elemento que precede o nome - artigo ou numeral (os livro, duas lata, dez real, três quilo). Se houver mais de dois elementos, a complexidade pode ser maior (meus dez livro, os meus livro verde etc.). O nome permanece invariável. O linguista isso, constata isso. Não só na fila do supermercado, mas também em documentos da Torre do Tombo anteriores a Camões. Portanto, mesmo na língua escrita dos sábios de antanho.
O linguista também constata the books no inglês, isto é, que não há marca de plural no artigo, só no nome, como se o inglês fosse uma espécie de avesso do português informal ou popular. O linguista aceita isso? Ora, ele não tem alternativa! É um dado, é um fato, como a combustão, a gravitação, o bico do tucano ou as marés. O linguista diz que a escola deve ensinar formas como os livro? Esse é outro departamento, ao qual volto logo.
Faço uma digressão para dar um exemplo de regra, porque sei que é um conceito problemático. Se dizemos "as cargas", a primeira sílaba desta sequência é "as". O "s" final é surdo (as cordas vocais não vibram para produzir o "s"). Se dizemos "as gatas", a primeira sílaba é a "mesma", mas nós pronunciamos "az" - com as cordas vocais vibrando para produzir o "z". Por que dizemos um "z" neste caso? Porque a primeira consoante de "gatas" é sonora, e, por isso, a consoante que a antecede também se sonoriza. Não acredita? Vá a um laboratório e faça um teste. Ou, o que é mais barato, ponha os dedos na sua garganta, diga "as gatas" e perceberá a vibração. Tem mais: se dizemos "as asas", não só dizemos um "z" no final de "as", como também reordenamos as sílabas: dizemos as.ga.tas e as.ca.sas, mas dizemos a.sa.sas ("as" se dividiu, porque o "a" da palavra seguinte puxou o "s/z" para si). Dividimos "asas" em "a.sas", mas dividimos "as asas" em a.sa.sas.
Volto ao tema do linguista que aceitaria tudo! Para quem só teve aula de certo / errado e acha que isso é tudo, especialmente se não tiver nenhuma formação histórica que lhe permitiria saber que o certo de agora pode ter sido o errado de antes, pode ser difícil entender que o trabalho do linguista é completamente diferente do trabalho do professor de português.
Não "aceitar" construções como as acima mencionadas ou mesmo algumas mais "chocantes" é, para um linguista, o que seria para um botânico não "aceitar" uma gramínea. O que não significa que o botânico paste.
Proponho o seguinte experimento mental: suponha que um descendente seu nasça no ano 2500. Suponha que o português culto de então inclua formas como "A casa que eu moro nela mais os dois armário vale 300 cabral" (acho que não será o caso, mas é só um experimento). Seu descendente nunca saberá que fala uma língua errada. Saberá, talvez (se estudar mais do que você), que um ancestral dele falava formas arcaicas do português, como 300 cabrais.
Outro tema: o linguista diz que a escola deve ensinar a dizer Os livro? Não. Nenhum linguista propõe isso em lugar nenhum (desafio os que têm opinião contrária a fornecer uma referência). Aliás, isso não foi dito no tal livro, embora todos os comentaristas digam que leram isso.
O linguista não propõe isso por duas razões: a) as pessoas já sabem falar os livro, não precisam ser ensinadas (observe-se que ninguém falao livros, o que não é banal); b) ele acha - e nisso tem razão - que é mais fácil que alguém aprenda os livros se lhe dizem que há duas formas de falar do que se lhe dizem que ele é burro e não sabe nem falar, que fala tudo errado. Há muitos relatos de experiências bem sucedidas porque adotaram uma postura diferente em relação à fala dos alunos.
Enfim, cada campo tem seus Bolsonaros. Merecidos ou não.
PS 1 - todos os comentaristas (colunistas de jornais, de blogs e de TVs) que eu ouvi leram errado uma página (sim, era só UMA página!) do livro que deu origem à celeuma na semana passada. Minha pergunta é: se eles defendem a língua culta como meio de comunicação, como explicam que leram tão mal um texto escrito em língua culta? É no teste PISA que o Brasil, sempre tem fracassado, não é? Pois é, este foi um teste de leitura. Nosso jornalismo seria reprovado.
PS 2 - Alexandre Garcia começou um comentário irado sobre o livro em questão assim, no Bom Dia, Brasil de terça-feira: "quando eu TAVA na escola...". Uma carta de leitor que criticava a forma "os livro" dizia "ensinam os alunos DE que se pode falar errado". Uma professora entrevistada que criticou a doutrina do livro disse "a língua é ONDE nos une" e Monforte perguntou "Onde FICA as leis de concordância?". Ou seja: eles abonaram a tese do livro que estavam criticando. Só que, provavelmente, acham que falam certinho! Não se dão conta do que acontece com a língua DELES mesmos!!

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.

Fale com Sírio Possenti: siriopossenti@terra.com.br
Opiniões expressas aqui são de exclusiva responsabilidade do autor e não necessariamente estão de acordo com os parâmetros editoriais de Terra Magazine.

domingo, 22 de maio de 2011

Um pequeno retorno (texto)

Voltei! Na verdade nunca saí deste lugar, então como posso voltar se não fui? Se nunca fui. Fui, de certo modo, mas posso adiantar que estive por aqui durante todos esses dias, ainda que ausente. Ir, voltar, estar, nunca ter ido, pode até parecer meio confuso. Mas não é. 
A gente pode ir sem nunca ter saído do lugar ou pode sempre estar mesmo não tendo ficado por aqui. Ir sem arredar o pé ou ter ficado enquanto se ia. Fui e fiquei, fora e dentro, assim, sem qualquer contradição.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Da Série Contos Mínimos

Alguma coisa se quebrou. Nada seria suficientemente capaz de juntar todos os pedaços.

domingo, 15 de maio de 2011

Ivan Lessa: Toda força a nossos gays mirins (texto)

Uma amiga me indicou o texto de Ivan Lessa. Bom ler alguém com essa compreensão.

Sobre o abaixo-assinado contra o "Kit Gay" nas escolas públicas do país

Não sou homem de abaixo-assinados. Assinei alguns, só de birra, e, em seguida, abaixei a cabeça e moitei. Toda ação comum me desestimula. Nelas não acredito. Que me apontem um abaixo-assinado que tenha funcionado no Brasil. Isso. Não tem. Pensei que deles estivesse livre.
Um veio me pegar aqui numa Londres onde apenas 35% das petições públicas chegam aos olhos e ouvidos das pessoas que decidem essas coisas – e olha que já é muito.
Nosso abaixo-assinado, e que me atingiu no meio da testa, vai logo dizendo a que veio e a quantas as coisas andam: “Somos contra o maior escândalo deste país, o KIT GAY (sic)” e é destinado à presidente da República Federativa do Brasil; Congresso Nacional do Brasil; Supremo Tribunal Federal e Assembleias Legislativas.
Quem redigiu o documento foi direto ao assunto. Lá está e limito-me a copiar: “Somos contra o maior escândalo deste país, o KIT GAY (sic). Não aceitamos que nossas crianças de 7,8,9 e 10 anos recebam esse tal de KIT GAY. Neste KIT GAY há 2 vídeos com o título Contra a Homofobia, mas na verdade nesses vídeos contém mensagens subliminares para as nossas crianças, induzindo-as à homossexualidade. Uma coisa é preconceito... Outra coisa é fazer apologia ao homossexualismo!!!”
O português é meio maroto, mas o recado é dado de bate-pronto. Na linha seguinte, o documento acusa o Kit Gay (deixaram de lado as maiúsculas escandalosas. Por quê?) de estímulo ao homossexualismo e incentivo à promiscuidade e à confusão de discernimento da criança sobre o conceito de família. Que família, “seu”? A garotada envolvida está no banheiro do colégio.
Prossegue o texto, citando como fonte não Julian Assange (que fim levou?) mas o Jornal da Câmara dos Deputados. Ao que parece, o primeiro vídeo mostra um garoto de 14 anos chamado Ricardo que, certa hora, vai ao banheiro urinar. Enquanto urina, Ricardo dá uma olhada para o lado e vê o pênis de seu amigo e se apaixona pelo garoto. Ao retornar para a sala de aula, a professora da classe chama o menino pelo seu nome (Ricardo), que é quando o mesmo cerra seus lábios, pois, segundo diz, em alto e bom som, que quer ser chamado de “Bianca”.
Algumas ponderações: Ricardo, ou “Bianca”, descobriu sua porção homossexual em questão de minutos talvez, nem mesmo chegando a buscar um nom de guerre mais original. Mais: como era o nome da professora? E do amigo cujo piu-piu mudou a vida de Ricardo/”Bianca”? Muito importante: o que havia de especial na troncha do amigo da mijadinha escolar? E ainda: terá a professora exclamado para seus botões, “Bianca! Audácia do jovem bofe!”
No outro vídeo (consta que o diretor de ambos optou pela anonimidade), duas meninas lésbicas de aproximadamente 13 anos (como é que a petição sabe? Idade de mulher ou menina engana muito) serve de exemplar para outras (colegas? Lésbicas também? Heterossexuais? Que colégio é esse?). O vídeo mostra, e não sei como, a profundidade que a língua de uma menina deve entrar na boca da outra no decorrer do que já foi chamado de “ósculo sáfico”. Ouvi em algum lugar que, se der jeito e havendo condição, o ideal é 8cm. Mas capaz de ser exagero do pessoal.
O abaixo-assinado frisa que os vídeos (ou Kit Gay) já se encontram em fase de licitação (sempre um mau sinal) para serem distribuídos em todas as escolas estaduais e municipais de todo – conforme chamam – PAÍS. E finaliza o documento: “Uma coisa é preconceito, outra coisa é APOLOGIA AO HOMOSSEXUALISMO.” (Ei, abaixo-assinado, é DO e não AO. Ninguém aí foi ao colégio? Nem para fazer pipi ao lado do amigo anônimo do Ricardinho?)
Não assinei por uma questão de princípio e de fim também. Nem o garoto nem as meninas me parecem críveis e a professora não pode ser mais incompetente. Sem falar do fato que há um questionário com 6 quesitos a serem preenchidos.
Mas tenho uma sugestão. Dar à garotada que está jogando no outro time, por sinal cada vez mais o time de cá, nomes mais apropriados, como se faz com casal de bonecas, Ken e Barbie, por aí. Poderia ser Kit Gay (o guri) e Kitty Gay.

Domingo merece poesia

Agora o braço não é mais o braço 

erguido num grito de gol.

Agora o braço é uma linha, um traço,
um rastro espelhado e brilhante.
E todas as figuras são assim:
desenhos de luz, agrupamentos de pontos,
de partículas, um quadro de impulsos,
um processamento de sinais.
E assim - dizem - recontam a vida.
Agora retiram de mim a cobertura de carne,
escorrem todo o sangue, afinam os ossos
em fios luminosos e aí estou
pelo salão, pelas casas, pelas cidades,
parecida comigo.
Um rascunho,
uma forma nebulosa feita de luz e sombra
como uma estrela. Agora eu sou uma estrela.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Da Série Contos Mínimos


Dia desses, me mudei para uma cidadezinha muito fria do interior de um estado do sul do meu país. Lá, além desse frio imenso e de uma forte neblina que toma as ruas da cidade, pela manhã avisto, da janela do meu escritório, uma pequena casa de madeira em que uma velha senhora, apesar de todo esse frio e de toda aquela neblina que toma as ruas dessa pequena cidade, sai, a cada manhã, com um balde em punho molhando as plantinhas de um quintal baldio atrás dessa tal casa de madeira. Um cheiro de terra molhada invade a minha lembrança. Meu coração fica do tamanho da cidade, cheio até a boca da saudade que sinto do cheiro de minha terra. Por aqui um cheiro de mato toma conta no fim dos dias de parte de minha casa. Um exílio de aromas que meu olfato não recordava. Lá o cheio é outro: são buzinas, são cores, são pessoas que invadem essa memória olfativa.

Solidão na velhice...

A solidão na velhice é uma experiência profundamente marcada pela complexidade da existência humana. Com o passar dos anos, os vínculos soci...