Em um samba composto em parceria com Maurício
Tapajós, o grande letrista Aldir Blanc contrapõe o Brasil –
território lúdico-mítico de “Sertões, Guimarães, bachianas”
e de “Jobim, sabiá, bem-te-vi” - ao Brazil – projeção
ditatorial de um país subalterno e ignorante, condenado a imitar os
modismos, a estética e o consumismo norte-americanos. Gravada
magnificamente por Elis Regina, “Querelas do Brasil” tornou-se,
se não um sucesso, um objeto de culto nacional.
Que me perdoe Aldir (cujas crônicas boêmias e
malandras eu cultuo como a objetos de arte feitos do mais genuíno
humor), mas a lembrança da música foi a primeira coisa que me veio
à cabeça ao ver José Serra chamando o país que sonhou um dia
governar de Estados Unidos do Brasil.
Para além do aspecto cômico da fala e do que
revela de desconhecimento histórico básico, trata-se de uma troca
de palavras significativa, que explicita – como o clássico ato
falho freudiano que é - a visão de mundo do político peessedebista
e evoca a dinâmica da relação entre o nacional e o internacional
em um passado não muito distante.
Nunca fomos tão vira-latas
Nunca fomos tão vira-latas
Refiro-me, é claro, aos oito anos em que Fernando
Henrique Cardoso esteve no poder, um período durante o qual o
deslumbre com o que fosse estrangeiro atingiu um tal nível de
transbordamento que só pode ser equiparado à vergonha de ser
brasileiro exibida pelo tucanato e por seus eternos apoiadores na
mídia – e por estes bombardeada noite e dia à população.
Não que a baixa auto-estima nacional fosse uma
novidade trazida pelo tucanato. Nelson Rodrigues, antes da Copa de
1958, afirmava que o “complexo de vira-latas” - por ele definido
como "a inferioridade em que o brasileiro se coloca,
voluntariamente, em face do resto do mundo" - era o principal
adversário do "escrete canarinho". Mais importante: toda
uma reflexão sobre o país, dominante por quase duas décadas a
partir de fins dos anos 50 - e que seria tematizada de forma
recorrente pela produção cultural do período - identificava no
atraso estrutural da nação e em sua condição de
subdesenvolvimento a chave para compreender seus problemas e
superá-los.
Razões de fundo
A novidade trazida por Collor e aprofundada pelos
tucanos foi que o complexo de inferioridade do brasileiro deixou de
se apresentar apenas como um sintoma (a ser, portanto, mitigado à
medida que a defasagem estrutural fosse sendo superada) para se
tornar objeto de culto, a ser estimulado e agravado - tarefa da qual
se incumbiram com deleite jornais, revistas e programas televisivos
(cujo exemplo acabado é o anacrônico Méanrratan Conéquichion).
Em uma época em que globalização e
neoliberalismo ainda eram largamente compreendidos como termos
obrigatoriamente indissociáveis - como se pode aferir pela leitura
de alguns dos principais textos teóricos da primeira metade dos anos
90 -, tal operação se deu, sobretudo, devido a um imperativo ditado
pelo receituário do Consenso de Washington, adotado como princípio
orientador das políticas de Estado: a necessidade de predispor
ideologicamente o público a se convencer, primeiro, de
estarmos condenados a ser uma nação atrasada e subalterna ante
a superioridade insuperável do "primeiro mundo". Em
segundo lugar, de que a única solução para nossa redenção seria
acatar os pressupostos da "nova ordem econômica mundial"
ditada pelos EUA e, enxugando ao máximo o tamanho e as funções do
Estado brasileiro, em torno de tal país orbitar, abrindo mão de
nossa identidade como nação e aceitando passivamente a incapacidade
de comandar nosso destino. O objetivo final a coroar tal
empreitada seria a adesão à ALCA, o tratado de "livre-comércio"
engendrado por Washington e que - como o exemplo mexicano o demonstra
de forma cabal - fatalmente levaria o Brasil a um penoso retrocesso
econômico e social.
É dentro dessa lógica que se insere o fato
de que o príncipe – digo, o presidente – de turno, no seu
chilique mais aloprado, tenha reagido à pressão popular contrária
às medidas recessivas que tomara afirmando que “os aposentados são
vagabundos e os brasileiros, caipiras”. O adjetivo “caipira”,
nesse contexto, é não só utilizado no intuito claro de
desqualificar, mas de atingir seus alvos com uma grave acusação de
ignorância e desconhecimento do que seja o mundo. O caipira, para
FHC, não diz respeito ao ser social, inserido em uma cultura
telúrica e historicamente premido por um processo de "persistências"
e "alterações", de que nos fala Antonio Candido - mas a
um emblema estático da brasilidade como traço negativo. Daí
resulta um paradoxo: para o outrora celebrado sociólogo, todos os
brasileiros são caipiras, e o problema de ser caipira é justamente
ser brasileiro.
Por outro lado (mas em lógica análoga), dizer
que algo é “de Primeiro Mundo”, embora fosse uma expressão
antiga, tornou-se, nos anos FHC, moeda corrente, a expressão
valorativa por excelência. Enquanto a população sofria com os
baques que a economia do país sofria à mínima crise internacional
(fosse ela russa, mexicana ou dos "tigres asiáticos), o
desprezo ao que fosse nacional e o ódio ao que fosse estatal eram
incentivados pelo tucanato no poder e pela mídia corporativa (que
apoiou o governo FHC com uma subserviência deslumbrada e acrítica
indigna de ser chamada de jornalismo). Foi nessa toada - e exibindo o
salário do mais abonado magistrado como se fosse a regra entre o
funcionalismo - que se convenceu parte da população de que as
privatizações modernizariam o país e acabariam com os "barnabés"
(a gíria pejorativa com que 9,9 de cada dez colunistas - esses
mesmos que aí estão - se referiam aos trabalhadores empregados pelo
Estado)
Cenário em mutação
O pós-11 de setembro, com a diminuição do poder
norte-americano, a ascensão dos BRICs e a chegada ao poder – na
América Latina, sobretudo – de governantes de centro-esquerda,
trouxe, aos poucos, uma mudança de cenário, a qual, somada às
possibilidades interativas da web 2.0 e ao grande acréscimo na
inclusão digital mundial, permitiu vislumbrar que o fenômeno
globalizante e a ideologia neoliberal não eram, sempre e
necessariamente, indissociáveis. Havia, percebeu-se, aspectos da
globalização - como um maior volume de interação transnacional, a ação comunicacional e político-social
a partir da internet ou a troca gratuita de arquivos de áudio e
vídeo - que permitiam, na verdade, contra-atacar pontualmente e
questionar o neoliberalismo.
É no âmbito desse novo cenário que o governo
Lula, a partir de sua política externa - caracterizada por prioridade às
relações
Sul-Sul e aos BRICs, parcerias e auxílio aos países mais
pobres da América do Sul, África e Oriente Médio e ímpeto de representar
países em desenvolvimento em fóruns internacionais, recusa à Alca e
tentativa de diminuição do poder de influência dos EUA no país - e
de sua atuação cultural interna - em que se destacam a valorização da
cultura nacional,
a pulverização das verbas para além do eixo Rio-SP, e a inclusão
sócio-cultural via Pontos de Cultura -, paulatinamente insere uma nova
dinâmica no imaginário acerca do locus do Brasil e do brasileiro no
contexto de um mundo globalizado.
Um aspecto muito importante a ressaltar em relação
a esse processo é constatar que a redenção de um complexo de
inferioridade secular, ainda que se dê, atualmente, de modo parcial
e para parcelas da população, não foi substituída, via de regra,
por um nacionalismo tacanho nem por um patriotismo fanático.
Provincianismo em crise
Há de se considerar, como pontos polêmicos a
discutir, a presença do exército brasileiro no Haiti e o temor
crescente, entre alguns de nossos vizinhos sul-americanos, de que o
Brasil esteja se tornando imperialista (acusação que não é nova:
trabalhando como jornalista na Bolívia, em 2001, fui fisicamente
agredido por skinheads que demonstravam ódio ao “imperialismo
brasileiro”).
Mas é preciso ser obtuso ou desonesto para negar
que a melhora da economia real verificada na última década, com
decréscimo substancial das taxas de desemprego e aumento do poder de
compra, a ascensão de uma nova e volumosa classe média, bem como o
acesso - ou o incremento do acesso - a bens de consumo durável,
lazer, acesso digital e viagens aéreas acabaram por modificar para
melhor a auto-imagem de parcela revelante da população - um
fenômeno que tende a se tornar ainda mais evidente ante a
contraposição da atual situação brasileira à grave crise
econômica que ora aflige, infelizmente, a população dos EUA e de
vários países europeus a amargar uma penosa débâcle social.
Além disso, não obstante os muitos desafios
postos ao Brasil em termos de redução da desigualdade, saúde,
educação e demais itens da pauta dos direitos humanos avançados,
tanto o grau quanto o perfil axiológico da visibilidade do país no
exterior são hoje maiores e mais positivos do que nunca. "A
crítica permanente ao Brasil está fundada em excesso de
provincianismo", observou o sociólogo Alberto Carlos Almeida,
em artigo
no Valor Econômico. E com um número cada vez maior de
brasileiros viajando ao exterior, cada vez mais gente descobre que a
oposição simplista entre um país incompetente e fadado ao fracasso e um "primeiro-mundo" perfeito e irretocável não passa de
uma falácia. - o que,
evidentemente, também reverte em acréscimo da auto-estima nacional.
A volta do atraso
Tudo isso faz com que o discurso negativista sobre
o país, só enxergando suas mazelas, além de alimentar provincianos
convictos, tenha se tornado uma das principais bandeiras dos setores
conservadores, mais um componente a se juntar ao discurso moralista
que se tornou praticamente a única estratégia discursiva de uma
oposição que não tem projeto para o país e que há mais de uma
década combate o governo de turno valendo-se tão-somente de ataques
neoudenistas.
Ora, é a essa mesma oposição a que José Serra
pertence. E não é preciso nenhum esforço para enxergar no ora pré-candidato a prefeito de São Paulo a mesma empáfia, a mesma
arrogância, o mesmo desprezo pelo Brasil e pelo povo brasileiro que
o presidente a que serviu como ministro da Saúde e do Planejamento
ostentou por oito anos - os quais só foram dourados na boca e na
pena dos colunistas a serviço do mercado, pois para a maioria da
população foram de penúria, desemprego e carestia.
Mais do que um lapso eventual, a menção aos
"Estados Unidos ao Brasil", feita por Serra, é a expressão
do desejo de regresso a um estado de coisas em que as elites
brasileiras traficavam a riqueza do país em troca das migalhas que se
lhes atirava o grande capital internacional, enquanto o povo
chafurdava no subemprego e na miséria.
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