domingo, 11 de março de 2012

Ato falho de Serra reflete a mentalidade tucana (Maurício Calero)

Em um samba composto em parceria com Maurício Tapajós, o grande letrista Aldir Blanc contrapõe o Brasil – território lúdico-mítico de “Sertões, Guimarães, bachianas” e de “Jobim, sabiá, bem-te-vi” - ao Brazil – projeção ditatorial de um país subalterno e ignorante, condenado a imitar os modismos, a estética e o consumismo norte-americanos. Gravada magnificamente por Elis Regina, “Querelas do Brasil” tornou-se, se não um sucesso, um objeto de culto nacional.
Que me perdoe Aldir (cujas crônicas boêmias e malandras eu cultuo como a objetos de arte feitos do mais genuíno humor), mas a lembrança da música foi a primeira coisa que me veio à cabeça ao ver José Serra chamando o país que sonhou um dia governar de Estados Unidos do Brasil.
Para além do aspecto cômico da fala e do que revela de desconhecimento histórico básico, trata-se de uma troca de palavras significativa, que explicita – como o clássico ato falho freudiano que é - a visão de mundo do político peessedebista e evoca a dinâmica da relação entre o nacional e o internacional em um passado não muito distante.
Nunca fomos tão vira-latas
Refiro-me, é claro, aos oito anos em que Fernando Henrique Cardoso esteve no poder, um período durante o qual o deslumbre com o que fosse estrangeiro atingiu um tal nível de transbordamento que só pode ser equiparado à vergonha de ser brasileiro exibida pelo tucanato e por seus eternos apoiadores na mídia – e por estes bombardeada noite e dia à população.
Não que a baixa auto-estima nacional fosse uma novidade trazida pelo tucanato. Nelson Rodrigues, antes da Copa de 1958, afirmava que o “complexo de vira-latas” - por ele definido como "a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo" - era o principal adversário do "escrete canarinho". Mais importante: toda uma reflexão sobre o país, dominante por quase duas décadas a partir de fins dos anos 50 - e que seria tematizada de forma recorrente pela produção cultural do período - identificava no atraso estrutural da nação e em sua condição de subdesenvolvimento a chave para compreender seus problemas e superá-los.
Razões de fundo
A novidade trazida por Collor e aprofundada pelos tucanos foi que o complexo de inferioridade do brasileiro deixou de se apresentar apenas como um sintoma (a ser, portanto, mitigado à medida que a defasagem estrutural fosse sendo superada) para se tornar objeto de culto, a ser estimulado e agravado - tarefa da qual se incumbiram com deleite jornais, revistas e programas televisivos (cujo exemplo acabado é o anacrônico Méanrratan Conéquichion). 
Em uma época em que globalização e neoliberalismo ainda eram largamente compreendidos como termos obrigatoriamente indissociáveis - como se pode aferir pela leitura de alguns dos principais textos teóricos da primeira metade dos anos 90 -, tal operação se deu, sobretudo, devido a um imperativo ditado pelo receituário do Consenso de Washington, adotado como princípio orientador das políticas de Estado: a necessidade de predispor ideologicamente o público a se convencer,  primeiro, de estarmos condenados a ser uma nação atrasada e subalterna ante a superioridade insuperável do "primeiro mundo". Em segundo lugar, de que a única solução para nossa redenção seria acatar os pressupostos da "nova ordem econômica mundial" ditada pelos EUA e, enxugando ao máximo o tamanho e as funções do Estado brasileiro, em torno de tal país orbitar, abrindo mão de nossa identidade como nação e aceitando passivamente a incapacidade de comandar nosso destino. O objetivo final a coroar tal empreitada seria a adesão à ALCA, o tratado de "livre-comércio" engendrado por Washington e que - como o exemplo mexicano o demonstra de forma cabal - fatalmente levaria o Brasil a um penoso retrocesso econômico e social.
É dentro dessa lógica que se insere o fato de que o príncipe – digo, o presidente – de turno, no seu chilique mais aloprado, tenha reagido à pressão popular contrária às medidas recessivas que tomara afirmando que “os aposentados são vagabundos e os brasileiros, caipiras”. O adjetivo “caipira”, nesse contexto, é não só utilizado no intuito claro de desqualificar, mas de atingir seus alvos com uma grave acusação de ignorância e desconhecimento do que seja o mundo. O caipira, para FHC, não diz respeito ao ser social, inserido em uma cultura telúrica e historicamente premido por um processo de "persistências" e "alterações", de que nos fala Antonio Candido - mas a um emblema estático da brasilidade como traço negativo. Daí resulta um paradoxo: para o outrora celebrado sociólogo, todos os brasileiros são caipiras, e o problema de ser caipira é justamente ser brasileiro.
Por outro lado (mas em lógica análoga), dizer que algo é “de Primeiro Mundo”, embora fosse uma expressão antiga, tornou-se, nos anos FHC, moeda corrente, a expressão valorativa por excelência. Enquanto a população sofria com os baques que a economia do país sofria à mínima crise internacional (fosse ela russa, mexicana ou dos "tigres asiáticos), o desprezo ao que fosse nacional e o ódio ao que fosse estatal eram incentivados pelo tucanato no poder e pela mídia corporativa (que apoiou o governo FHC com uma subserviência deslumbrada e acrítica indigna de ser chamada de jornalismo). Foi nessa toada - e exibindo o salário do mais abonado magistrado como se fosse a regra entre o funcionalismo - que se convenceu parte da população de que as privatizações modernizariam o país e acabariam com os "barnabés" (a gíria pejorativa com que 9,9 de cada dez colunistas - esses mesmos que aí estão - se referiam aos trabalhadores empregados pelo Estado)
Cenário em mutação
O pós-11 de setembro, com a diminuição do poder norte-americano, a ascensão dos BRICs e a chegada ao poder – na América Latina, sobretudo – de governantes de centro-esquerda, trouxe, aos poucos, uma mudança de cenário, a qual, somada às possibilidades interativas da web 2.0 e ao grande acréscimo na inclusão digital mundial, permitiu vislumbrar que o fenômeno globalizante e a ideologia neoliberal não eram, sempre e necessariamente, indissociáveis. Havia, percebeu-se, aspectos da globalização - como um maior volume de interação transnacional, a ação comunicacional e político-social a partir da internet ou a troca gratuita de arquivos de áudio e vídeo - que permitiam, na verdade, contra-atacar pontualmente e questionar o neoliberalismo. 
É no âmbito desse novo cenário que o governo Lula, a partir de sua política externa - caracterizada por prioridade às relações Sul-Sul e aos BRICs, parcerias e auxílio aos países mais pobres da América do Sul, África e Oriente Médio e ímpeto de representar países em desenvolvimento em fóruns internacionais, recusa à Alca e tentativa de diminuição do poder de influência dos EUA no país - e de sua atuação cultural interna - em que se destacam a valorização da cultura nacional, a pulverização das verbas para além do eixo Rio-SP, e a inclusão sócio-cultural via Pontos de Cultura -, paulatinamente insere uma nova dinâmica no imaginário acerca do locus do Brasil e do brasileiro no contexto de um mundo globalizado. 
Um aspecto muito importante a ressaltar em relação a esse processo é constatar que a redenção de um complexo de inferioridade secular, ainda que se dê, atualmente, de modo parcial e para parcelas da população, não foi substituída, via de regra, por um nacionalismo tacanho nem por um patriotismo fanático. 
Provincianismo em crise
Há de se considerar, como pontos polêmicos a discutir, a presença do exército brasileiro no Haiti e o temor crescente, entre alguns de nossos vizinhos sul-americanos, de que o Brasil esteja se tornando imperialista (acusação que não é nova: trabalhando como jornalista na Bolívia, em 2001, fui fisicamente agredido por skinheads que demonstravam ódio ao “imperialismo brasileiro”). 

Mas é preciso ser obtuso ou desonesto para negar que a melhora da economia real verificada na última década, com decréscimo substancial das taxas de desemprego e aumento do poder de compra, a ascensão de uma nova e volumosa classe média, bem como o acesso - ou o incremento do acesso - a bens de consumo durável, lazer, acesso digital e viagens aéreas acabaram por modificar para melhor a auto-imagem de parcela revelante da população - um fenômeno que tende a se tornar ainda mais evidente ante a contraposição da atual situação brasileira à grave crise econômica que ora aflige, infelizmente, a população dos EUA e de vários países europeus a amargar uma penosa débâcle social. 
Além disso, não obstante os muitos desafios postos ao Brasil em termos de redução da desigualdade, saúde, educação e demais itens da pauta dos direitos humanos avançados, tanto o grau quanto o perfil axiológico da visibilidade do país no exterior são hoje maiores e mais positivos do que nunca. "A crítica permanente ao Brasil está fundada em excesso de provincianismo", observou o sociólogo Alberto Carlos Almeida, em artigo no Valor Econômico. E com um número cada vez maior de brasileiros viajando ao exterior, cada vez mais gente descobre que a oposição simplista entre um país incompetente e fadado ao fracasso e um "primeiro-mundo" perfeito e irretocável não passa de uma falácia. -  o que, evidentemente, também reverte em acréscimo da auto-estima nacional.


A volta do atraso
Tudo isso faz com que o discurso negativista sobre o país, só enxergando suas mazelas, além de alimentar provincianos convictos, tenha se tornado uma das principais bandeiras dos setores conservadores, mais um componente a se juntar ao discurso moralista que se tornou praticamente a única estratégia discursiva de uma oposição que não tem projeto para o país e que há mais de uma década combate o governo de turno valendo-se tão-somente de ataques neoudenistas. 
Ora, é a essa mesma oposição a que José Serra pertence. E não é preciso nenhum esforço para enxergar no ora pré-candidato a prefeito de São Paulo a mesma empáfia, a mesma arrogância, o mesmo desprezo pelo Brasil e pelo povo brasileiro que o presidente a que serviu como ministro da Saúde e do Planejamento ostentou por oito anos - os quais só foram dourados na boca e na pena dos colunistas a serviço do mercado, pois para a maioria da população foram de penúria, desemprego e carestia. 
Mais do que um lapso eventual, a menção aos "Estados Unidos ao Brasil", feita por Serra, é a expressão do desejo de regresso a um estado de coisas em que as elites brasileiras traficavam a riqueza do país em troca das migalhas que se lhes atirava o grande capital internacional, enquanto o povo chafurdava no subemprego e na miséria.
http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com/

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