quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Fragmentos de um discurso amoroso (Roland Barthes)

Tento recordar teu rosto, nome. Curioso, como às vezes nos escapam os traços da pessoa amada. Situo-te num passado já distante. Não te imagino num presente. De ti resta-me o que foste comigo. E foste-me ternura e descoberta do meu corpo, de minhas mãos até então inábeis que ensinaste a acariciar teus cabelos, a sentir teu corpo; e ainda descoberta de que a minha voz tinha um sentido para além de sons mais ou menos indistintos e vagos.

(...) Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que, entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução: por que desejo Esse? Por que o desejo por tanto tempo, languidamente?...

Todos os “fracassos” de amor se parecem (procedem todos da mesma falha). X... e Y... não souberam (puderam, quiseram) responder ao meu “pedido”, aderir à minha “verdade”; para mim, um não fez senão repetir o outro. E, entretanto, X... e Y... são incomparáveis.

A errância amorosa tem seus lados cômicos: parece um balé, mais ou menos rápido conforme a velocidade do sujeito infiel; mas é Wagner também uma grande ópera. O Holandês maldito é condenado a errar sobre o mar até encontrar uma mulher de uma fidelidade eterna. Sou esse Holandês Voador; não posso parar de errar (de amar) por causa de uma antiga marca que me destinou, nos tempos remotos da minha infância profunda, ao deus Imaginário, que me afligiu de uma compulsão de fala que me leva a dizer “Eu te amo”, de escala em escala, até que qualquer outro escolha essa fala e a devolva a mim; mas ninguém pode assumir a resposta impossível (que completa de uma forma insustentável), e a errância continua. 

Como termina um amor? - O quê? Termina? Em suma ninguém - exceto os outros - nunca sabe disso; uma espécie de inocência mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se esperava). Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso: eu mesmo (sujeito enamorado) não posso construir até o fim de minha história de amor: sou o poeta (o recitante apenas do começo); o final dessa história, assim como a minha própria morte, pertence aos outros; eles que escrevam romance, narrativa exterior, mítica. 

Bons tempos

Saindo de mim
Você foi saindo de mim
Com palavras tão leves
De uma forma tão branda
De quem partiu alegre
Você foi saindo de mim
Com sorriso impune
Como se toda faca não tivesse
Dois gumes
Você foi saindo de mim
Devagar e pra sempre
De uma forma sincera
Definitivamente
Você foi saindo de mim
Por todos os meus poros
E ainda está saindo
Nas vezes em que choro
(Ivan Lins)

Eu vou te esquecer (Beto Pellegrino/Ariston)


Sim,
Eu vou te esquecer
Tão completamente
Que nem vou me lembrar
De te esquecer
Eu nem vou lembrar
Eu vou me esquecer
Tão completamente
De tudo
Que nós fomos tudo
Nada vai restar
Vou te esquecer
Vou te arrancar da alma
Tão perfeitamente
Que nem a falta ficará no seu lugar
Vou te cortar da memória
Tão precisamente
Nenhuma cicatriz eu vou deixar
Te destilar do meu corpo
Tão inteiramente
Ninguém vai conseguir mais misturar
Sim
Eu vou te negar
Tão completamente
Que mesmo olhar o sol de frente
Não me vai cegar.

Ludo real (Chico Buarque/Vinícius Cantuária)

Como nem tudo é decepção.



Que nobreza você tem
Que seus lábios são reais
Que seus olhos vão além
Que uma noite faz o bem
E nunca mais
Que salta de sonho em sonho
E não quebra telha
Que passa através do amor
E não se atrapalha
Que cruza o rio
E não se molha
Ê, ê, ê andaia
A lua ê, a lua ê
andaia

Paladar (Fátima Guedes)

"Por quê será que o amor se considera imune?" Hoje, acordei com essa música na cabeça. Fazia tempo que eu não a ouvia.



Onde foi que você perdeu sua crítica
O seu paladar?
Como foi, porquê foi que não soube me amar?
Quando eu estava perto.
O amor morre de cansaço e renasce um carinho do seu
Ressentimento de ainda estar sozinho
Mas não se engane,
Não chame, despeito de saudade
Você não perdeu nem um pouco o costume de me incomodar
Me tirar do sossego pra eu admirar
Sua infelicidade
E logo agora que eu aprendi a conviver com a minha
Eu já morei com medo de acabar sozinha
E agora você pede pra voltar... me humilha mais uma vez
Pensa que eu vou voltar
Me humilha
Por quê será que o amor se considera imune?
Você não perdeu nem um pouco o costume de me incomodar?
Me tirar do sossego pra eu admirar
Sua infelicidade
E logo agora que eu aprendi a conviver com a minha
Eu já morei com medo de acabar sozinha
E agora você pede pra voltar... Me humilha mais uma vez
Pensa que eu vou voltar

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Se eu pudesse (Danuza Leão)


Se eu pudesse, mudava minha vida toda; não que ela esteja ruim, mas só para ver que ela pode ser diferente.
Se eu pudesse, me desfaria de muitas coisas, da minha casa e de quase todas as roupas. Afinal, quem precisa de mais do que dois pares de sapatos, dois jeans, quatro camisetas e dois suéteres, sobretudo quando anda pensando em mudar de vida?
Se eu tivesse muitas joias, enterrava todas elas na areia da praia para que um dia alguém enfiasse a mão brincando, assim para nada, e tivesse a felicidade de encontrar um colar de brilhantes. Afinal, dá para viver sem, não dá?
Das algumas garrafas de champanhe guardadas cuidadosamente, na horizontal, daria para abrir mão, sem nenhuma possibilidade de remorso futuro; champanhe, além de engordar, não passa de um espumante metido a alguma coisa, e nem barato dá, de tão fraquinho que é. Dos vinhos, mais fácil ainda; nada melhor do que o velho e bom uísque, com o qual sempre se pode contar.
E as amizades? Aliás, as amizades, não: as relações. Ah, se tivesse coragem, compraria um novo caderno de telefones e passava só aqueles pouquíssimos nomes que realmente têm algum significado, e que são tão poucos que nem precisaria escrever. Guardaria todos de cor, não na cabeça, mas no coração, e um dia me esqueceria de todos eles.
Se eu pudesse, iria recomeçar a vida em outra cidade, talvez em outro país, para nada, só para começar tudo do zero. Para às vezes sofrer bastante, pensando que poderia ter tido mais juízo e não ter feito tantas bobagens, pois se tivesse errado menos poderia ter sido mais feliz -talvez. Mas alguém tem o poder de fazer alguém sofrer, ou a capacidade do sofrimento é um bem pessoal e intransferível?
Se alguém conseguisse ainda me fazer sofrer, seria um acontecimento a ser festejado.
Se eu pudesse -e não tivesse tantos compromissos-, seria vegetariana, passaria as noites em claro e teria muito amor pelos animais e pelas crianças. Mas como tenho horror a qualquer bicho e nenhuma paciência com criancinhas, a não ser com meus bichos e minhas crianças, vou ter que atravessar a vida levando essa pesadíssima cruz -afinal, ficou combinado que de certas coisas não se pode não gostar, e se não se gostar não se pode dizer, que vida.
Se pudesse, largaria tudo e iria embora para um lugar onde ninguém me conhecesse, onde não teria passado nem futuro; para um lugar esquisito no qual não entenderia a língua do povo nem ninguém entenderia a minha. Seríamos todos, assumidamente, estranhos -como somos no edifício onde moramos, no local de trabalho, dentro de nossa família. Ou você pensa que alguém conhece alguém porque dá beijinhos no elevador?
Se eu pudesse, quando acordasse hoje de madrugada saía descalça só com um casaco em cima da pele e ia molhar os pés na água do mar, sozinha. Depois, ia tomar um café no balcão de um botequim, como fazem os homens.
Se eu pudesse, rasgava os talões de cheques, cortava os cartões de crédito com uma tesoura, fazia uma linda fogueira com os casacos de pele e ia saber como é que vivem os que não têm, nunca tiveram e nunca vão ter nada disso. E aproveitava o embalo para cortar os fios dos telefones, jogar o celular na tela da televisão e o computador pela janela -deve ser lindo, um computador voando.
Se eu pudesse, raspava a cabeça, acendia dois cigarros ao mesmo tempo e tomava uma vodca dupla, sem gelo, num copo de geleia. E pegaria uma gilete para picar em pedacinhos a carteira de identidade, o passaporte e o CPF, sem pensar um só instante nas consequências e sem um pingo de medo do futuro.
E jogava na lata de lixo meus lençóis, meus travesseiros de pluma, meu cobertor e engolia minhas pestanas postiças, só para aprender que a vida não é só isso.
Se eu pudesse, esquecia o meu nome, o meu passado e a minha história e ia ser ninguém. Ninguém.
Se eu pudesse, não, se eu quisesse. Pois é, tem dias que a gente está assim, mas passa.
Danuza Leão
Danuza Leão, jornalista e escritora, aborda temas ligados às relações entre pais e filhos, homens e mulheres, crianças, adolescentes, além de outros assuntos do dia-a-dia. Publicou seu primeiro livro em 1992. Escreve aos domingos na versão impressa do caderno "Cotidiano".

Elizeth Cardoso

Ontem, fiquei, quase que o dia inteiro, enquanto trabalhava, enquanto comia, enquanto entrava e saía de sites diversos, ouvindo Elizeth Cardoso. Pra mim, senão a melhor, uma das melhores vozes que a música brasileira (MPB) já teve e soma-se a isso (porque voz não é tudo - vide diversas cantoras ótimas que estragam a voz em virtude de um repertório) uma seleção irretocável de músicas e compositores de importância ímpar para a memória da MPB.
Conheci a Divina, era dessa forma que se referiam a ela, através da minha mãe. Na verdade, todas as cantoras contemporâneas à Elizeth Cardoso e as anteriores me foram apresentadas pela minha mãe (eu poderia citar, desconfiando sempre da minha memória, Marlene, Ademilde Fonseca, Emilinha, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Dolores Duran, Carmem e Aurora Miranda, Nora Ney, Maísa, Carmélia Alves, Zezé Gonzaga, Ellen de Lima, Alaíde Costa, entre tantas outras). Considero esta uma herança riquíssima em se tratando de cultura brasileira e de audição musical, porque, sem dúvida, essas vozes e seus repertórios me fizeram (re)conhecer mais e melhor a nossa língua e a nossa história.
E é claro que depois disso procurei outras cantoras, mais músicas, novos compositores porque investi muito nesse aspecto. 
Tenho aqui comigo em Cascavel, no Rio tenho ainda outros tantos, três CDs prá lá de perfeitos de Elizeth: Canção do Amor demais (1958), Todo sentimento (1989) e Ary Amoroso (1990). Prefiro o que ela divide com Rafael Rabello, Todo o sentimento,  porque "faixineira das canções" (de Joyce), "Camarim" (de Cartola/Hermínio Bello de Carvalho) e "Refém da solidão" (de Baden Powell/Paulo César Pinheiro) que abrem o disco me emocionam até aquele fio de cabelo que faz muito não tenho mais.
Além dessas, "Doce de coco" (de Jacob do Bandolim/Hermínio Bello de Carvalho), "Violão" (de Vitório Junior/Wilson Ferreira) e "Janelas abertas" (de Tom Jobim/Vinícius de Moraes) tocam fundo na alma de quem gosta de música.
As interpretações de Elizeth não são datadas. Parece que ela se reinventou e não perdeu, como tantas, infelizmente, o feeling musical.
Ouvi-la é ouvir tb a minha mãe cantando em casa. Tenho uma foto da minha mãe em um show de Elizeth no falecido Canecão (foi durante muitos anos a maior e melhor casa de espetáculos do Rio de Janeiro). 
Ontem, portanto, foi um dia de boas lembranças. Quem canta...encanta...os males espanta.

Solidão na velhice...

A solidão na velhice é uma experiência profundamente marcada pela complexidade da existência humana. Com o passar dos anos, os vínculos soci...