Antigamente,
o bandeirinha era um superfósforo apagado. Funcionava como uma espécie
de gandula lateral. E era patético, era comovente, vê-lo correr atrás de
uma bola e devolvê-la. Esse marmanjo, esse barbado tinha uma grandeza
na humildade de suas funções. Com o profissionalismo, o bandeirinha
passou a ter uma súbita importância. Na pior das hipóteses, era um
gandula remunerado. Continuava correndo atrás da bola, mas estava
ganhando 25 mil-réis por jogo.
Passa-se o tempo e, de uma maneira
insidiosa, macia, o bandeirinha deixou de ser aquele são Francisco de
alpercatas. Tinha voz ativa. Já não era recrutado entre os pés-rapados,
os borra-botas do esporte. Vejamos: quem é o bandeirinha em nossos dias?
Juízes de primeira categoria e, numa palavra, sujeitos qualificados,
que entendem de futebol, de regra, que dão palpites a torto e a direito.
Mas nunca, em toda a história do futebol carioca, brasileiro e mundial,
houve um caso como o do Fla-Flu de anteontem.
Amigos, o cronista
esportivo é o cidadão mais convencional do mundo. Quando um time vence
outro, o cronista repete, textualmente, o que vem dizendo desde a Guerra
do Paraguai: "Vitória merecida". Nunca lhe ocorreou a hipótese, ainda
que tênue, ainda que vaga, de uma vitória imerecida. Não. E mesmo quando
o derrotado apresenta muito mais jogo e foi traído por um golpe de
azar, o comentarista de futebol fala na "maior objetividade do
vencedor". Ainda agora, no último Fla-Flu, o jornalista especializado
finge não perceber a superioridade tão nítida do Tricolor.
Por
que venceu o Flamengo e por que perdeu o Fluminense? Para a imprensa, o
Rubro-negro foi mais objetivo e dominou no segundo tempo. É, como se vê,
a imagem desfigurada do clássico. Até uma zebra no Jardim Zoológico
perceberia a influência capital que teve, no resultado, um dos
bandeirinhas. Mas a crônica não toma conhecimento deste fato sem
precedentes ou, melhor, não atribui a este fato inédito uma importância
fundamental.
Amigos, pela primeira vez, em toda a minha
experiência futebolística e, mais do que isso, em toda a minha
experiência terrena, eu vejo um bandeirinha artilheiro! Pois foi o que
aconteceu no Fla-Flu. Um bandeirinha decidiu o jogo e com que tranqüila e
arrepiante desenvoltura! Segundo o meu colega Nei Bianchi, o simpático
auxiliar de juiz tem o apelido de "Caixa Econômica". Ele é "Caixa
Econômica", como poderia ser "Banco de Crédito Real de Minas Gerais",
"Banco Boavista S.A.", "Prolar".
Muita gente não foi ao campo e
não pode formar uma idéia, mesmo aproximada, do que aconteceu. O fato é
que, em dado momento, a bola chega ao bandeirinha e do bandeirinha parte
para um jogador do Flamengo. O gol resultou, só e só, dessa intervenção
que eu chamaria de sobrenatural. Toda a imprensa, com uma erudição
marota, diz que, como o juiz, o bandeirinha é ponto morto. Ora, meus
amigos, o senso comum é o que há de mais incomum. Porque se o árbitro da
peleja possuísse um pingo de senso comum, teria achado o fato
estranhíssimo. Das duas, uma: ou o bandeirinha estava fora do campo e a
bola saiu, ou estava dentro do campo e, nesse caso, vamos perguntar: Por
quê, senhores, Por quê?
Amigos, vamos falar de coração para
coração, de consciência para consciência. Os jornais passam por alto
sobre o episódio, citam o bandeirinha como um detalhe. Não entra na
cabeça dos meus confrades que o bandeirinha não está ali para passear
dentro do campo. O juiz é ponto morto porque está obrigado,
funcionalmente, a permanecer no coração mesmo do jogo. Mas o bandeirinha
que, sem quê, nem para quê, entra em campo e serve de tabela, está
praticando uma óbvia, uma clara, uma escandalosa ilegalidade. Escrevem
os meus confrades que a lei não menciona a hipótese. E daí? Não
menciona, porque a coisa é evidente por si mesma.
Na ocasião, o
Flamengo estava vencendo por 1x0, graças a um tiro de Henrique,
desferido com incrível felicidade. Mas o Fluminense, muito bem armado,
seguro de si e do jogo, perseguia o empate. E, súbito, vem o
magistralíssimo passe do bandeirinha, passe tão exato, preciso,
perfeito, que faria Didi, ou Zizinho, ou Domingos da Guia estourar de
inveja. Enfim, uma coisa é certa: se as coisas continuam assim, hei de
ver, em futuro próximo, bandeirinhas cobrarem pênaltis e correrem, com
Pelé, no páreo dos artilheiros.
Nelson Rodrigues, 1959