O espírito da folia carioca
Não havia nem uma moeda na bolsinha de crochê com chave, celular e
filtro solar. “Moço, estou com um problema”, eu disse, constrangida, ao
senhor que trabalha no quiosque da Praia do Arpoador, depois de beber
com um amigo a água doce e fresca de dois cocos verdes. “Estou sem
dinheiro nenhum, esqueci em casa.” “Mas que problema”, perguntou Jósa,
sorrindo, gentil, com o facão na mão, “os cocos não estavam bons?”
“Ótimos”, respondi. “Então não tem nenhum problema”, ele disse, “uma boa
praia para vocês.”
Eu fiquei de pagar depois. Não nos conhecíamos. Eu me divertia, ele
trabalhava, num canto da orla carioca de onde avistamos o Morro Dois
Irmãos e a Pedra da Gávea ao fim da curva de mar, areia e barracas
coloridas.
Pensei. Em Paris, Londres ou Nova York, essa cena de cordialidade não
existiria. Os vendedores de lá cobram com rigor cada “centime”, cada
“penny”, cada “cent”, jamais arredondam um preço para baixo – e não há a
menor chance de que eles retribuam com um sorriso generoso uma falta de
dinheiro imprevista.
“Princesa, que horas são?”, pergunta o banhista de sunga. Não tem
“bonjour” nem “merci”, não tem “hi” e “thanks”, é uma consulta direta,
sem um pingo de cortesia formal, mas sedutora na medida da carioquice.
Pode ser o sol, os blocos de rua, a determinação de ser feliz em
fevereiro. O carioca anda mais extrovertido e simpático do que já é.
Não importa o resto. Ele parou de acompanhar o julgamento do
Lindemberg, a ficha suja dos políticos, o careca do mensalão, a greve
que se desmilinguiu em confete, os bueiros explosivos, a gasolina mais
cara, os fantasmas do Senado e os taxistas falsos que desonram a
fantasia de pirata nos aeroportos. Por um tempo, só importa se vai dar
praia, se o banho de mar está liberado, se a cerveja está gelada e se
cabem mais seis no boteco lotado, mesmo em pé do lado de fora.
Esse Rio pré-carnavalesco atrai, hoje, 800 mil turistas. Deles, 250 mil
são estrangeiros, os mais apaixonados pela beleza da cidade. Não há
como andar sem ouvir francês, inglês, italiano, espanhol e outros
idiomas egressos da neve. Dos turistas de outros Estados, paulistas e
mineiros são os campeões. O mais curioso é que passou a ter muito
carioca no Carnaval do Rio. Porque os blocos de rua foram ressuscitados.
Em vez de ir pular no Nordeste, o folião carioca agora fica nas
quebradas de sua cidade.
São 425 blocos, de janeiro até o domingo depois do Carnaval, quando o
Monobloco arrasta 400 mil na Avenida Rio Branco. Os nomes são poéticos,
como o Simpatia é Quase Amor. Irreverentes, como o Suvaco do Cristo,
Spanta Neném, Desliga da Justiça. Picantes, como Vem ni Mim que Sou
Facinha, Fogo na Cueca e Só o Cume Interessa. No som, há uma mistura até
blasfema, de tão democrática. Tem brega, rock, sertanejo e MPB. Sempre
em ritmo de samba. Preta Gil levou 250 mil foliões para o centro do Rio e
fez a multidão rezar um padre-nosso pelas vítimas dos desabamentos
recentes.
Por um bom (ou mau) tempo, o Carnaval carioca se resumiu ao desfile das
escolas de samba, a rua tinha dançado. “Quando eu era jovem, ou alguém
me arrumava um ingresso para a Sapucaí ou eu ia para Salvador, Angra,
Petrópolis”, diz o prefeito Eduardo Paes, de 48 anos. “Em vez de
ignorar, resolvemos abraçar os blocos, organizar, dialogar. E estamos
evoluindo ano a ano.” O que não vai ter nunca, diz Paes, é cordinha,
camarote ou corredor para os blocos. Têm de se concentrar nos bairros de
origem e ser ampliados nos subúrbios.
Claro que o trânsito complica. Mas a comunicação e o esquema
funcionaram melhor, e os engarrafamentos foram menores. No último fim de
semana, 700 mil pessoas desfilaram em paz em 111 blocos no Rio, com
muita azaração e criatividade. E menos lixo, menos vândalos e menos
mijões que nos anos anteriores. Há mais banheiros disponíveis. Canteiros
foram protegidos por redes na orla da Zona Sul para não ser pisoteados.
Em Santa Teresa, bairro ferido de morte pelos desastres com bondinhos, o
primeiro destaque do sábado de carnaval será o Céu na Terra. O
homenageado será o bondinho. O Cordão da Bola Preta irá da Candelária à
Cinelândia. A Banda de Ipanema obrigará os ipanemenses a deixar o carro
em casa. No Bloco do Barbas, em Botafogo, o carro-pipa deve refrescar os
foliões. O Empolga às 9 sairá em Copacabana, na Avenida Atlântica. De
bônus, temos as musas dos blocos, essas moças de gingado carioca sem
anabolizante.
Alienação? Transtorno? Pode ser, se você torce o nariz para esse
delírio popular. Para quem festeja a volta da folia de rua após tantos
anos de Carnaval exportação, é hora de curtir, não no Facebook ou na
televisão, mas na vida real. Ao ar livre, com cantoria, suor e beijos.
Deixe o samba correr.
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