Em
tese, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM)
luta para que cada cidadão e cada grupo de cidadãos possam exercer plenamente
sua diferença (claro, à condição de que essa diferença não atrapalhe a
liberdade dos outros).
Parece
lógico que a comissão seja presidida por um espírito libertário. Isso não
exclui pastores, padres, imames e moralistas rigorosos, à condição de que, por
cultura, experiência de vida e qualidades morais excepcionais, eles saibam
colocar a liberdade dos outros antes de suas próprias convicções.
Esse
não parece ser o caso do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), pastor evangélico,
que acaba de ser eleito presidente da CDHM. Na notável série de suas
declarações boçais citadas nestes dias, minhas preferidas são: 1) "Os
africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato."; e 2)
"O reto não foi feito para ser penetrado -não sou contra o homossexual,
sou contra o ato homossexual."
1)
No texto bíblico que eu li, Cam zombou do pai Noé, o qual condenou Cam e sua
descendência à servidão. Mais tarde, os defensores da escravatura decidiram que
Cam era o antepassado dos africanos e se serviram dessa história para
justificar a posse e o comércio de escravos.
Terminar
a evocação de um relato bíblico com um "isso é fato" já é ingênuo.
Terminar da mesma forma a revisão do relato bíblico proposta pelos defensores
da escravatura é para além de ridículo.
Feliciano,
formado em teologia, talvez leia a Bíblia no grego da Septuaginta e no hebraico
do texto massorético. Eu me viro em grego antigo, mas, por hábito, leio a
Bíblia no latim de São Jerônimo ou no inglês do rei James. Será que ele tem
acesso a fontes que eu ignoro?
2)
Cada deputado recebe uma verba considerável para que possa opinar com
conhecimento de causa. Mas Feliciano parece não saber que uma porcentagem
substancial de homossexuais não gosta de sexo anal, enquanto, inversamente, o
sexo anal faz parte das fantasias e das práticas sexuais de muitos homens e
mulheres heterossexuais. Isso, sem entrar no vasto capítulo das penetrações
(fantasiadas ou reais, solitárias ou não) com objetos inanimados ou outras
partes do corpo.
O
deputado Feliciano poderia se corrigir, generalizando: "hétero ou homo,
tanto faz: o reto não foi feito para ser penetrado". Eu entenderia melhor.
Mesmo
assim, fico curioso. Será que, para o deputado Feliciano, as mãos foram feitas
para carícias, solitárias ou não, recíprocas ou não? E como fica a boca? Sem
pensar muito longe, será que ela foi feita para ser invadida pela língua do
parceiro ou da parceira?
O
deputado Feliciano poderia se entrincheirar atrás da ideia de que tudo o que
não serve para a reprodução deveria ser banido do sexo. É uma opinião difícil
de ser sustentada, pois, justamente, somos os únicos mamíferos cujo desejo
sexual não depende nem um pouco da fertilidade da fêmea e, portanto, da
reprodução. Mas é uma opinião respeitável e não incompatível com a presidência
da CDHM, à condição de ser, para o próprio Feliciano, apenas uma opinião.
Em
outras palavras, o deputado Feliciano tem o direito de ser impenetrável, para
maior glória divina. Que diga, então, que SEU reto não foi feito para ser
penetrado, e ninguém protestará.
Imaginemos que eu faça parte de um culto satânico que só permite atos sexuais que desprezem a finalidade reprodutiva, e isso justamente para contrariar um eventual plano divino. Ou imaginemos que eu pense, simplesmente, que o melhor uso do meu corpo é o prazer e o gozo.
Imaginemos que eu faça parte de um culto satânico que só permite atos sexuais que desprezem a finalidade reprodutiva, e isso justamente para contrariar um eventual plano divino. Ou imaginemos que eu pense, simplesmente, que o melhor uso do meu corpo é o prazer e o gozo.
Será
que Marco Feliciano, presidente da CDHM, vai defender meus direitos? Se a
resposta não for um sim retumbante, a CDHM deve trocar de presidente.
Agora,
quem colocou o deputado Feliciano na presidência da CDHM? Seis deputados se
retiraram assim que Feliciano foi eleito; entre eles, Domingos Dutra (PT),
Luiza Erundina (PSB) e Jean Wyllys (PSOL). Mas, apesar do gesto dos seis, quem
entregou a comissão ao PSC e a Feliciano foi a base aliada do governo.
A
presidente Dilma disse que, nas eleições, "a gente faz o diabo" --ou
seja, qualquer aliança vale para ganhar. De fato, nas eleições, a maioria de
nossos políticos supostamente laicos e progressistas não fazem o diabo, fazem o
santinho. Para conquistar votos fundamentalistas, beijam anéis e frequentam
cultos; no fim, eles recompensam, de alguma forma. Por exemplo, com comissões.
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