sexta-feira, 8 de outubro de 2010

*Maria Rita Kehl: Dois pesos…

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de “acumulação primitiva de democracia”.
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

*A psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida pelo Jornal O Estado de S. Paulo depois de ter escrito, no último sábado (2), artigo sobre a “desqualificação” dos votos dos pobres. O texto, intitulado “Dois pesos…”, gerou grande repercussão na internet e mídias sociais nos últimos dias.

Pensamento do dia

Viajar é mudar o cenário da solidão. (Mário Quintana)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Pra pensar, apenas

“...é tanto o que temos para dizer quando nos calamos...” Saramago

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A morte de um amigo (texto)

O que nos resta diante da morte brutal de um amigo? Impotência, sobretudo. Certeza de que nada que se faça poderia fazer com que o tempo não apenas parasse, mas voltasse atrás e nos desse mais uma vez. 
Só que o tempo é daqui pra frente e o máximo que ele nos permite é nos pensar diante desse real que transformamos sob o olhar desse nosso tempo: não há justificativa que possa fazer sentido quando se pensa que a vida não vale nada ou que ela vale um tênis, uma calça jeans, uma carona, um carro. Como é que chegamos aqui? O que faremos daqui pra frente ao nos deparamos com esse limite? Que valores são esses que nos dominam sempre em detrimento do outro?
Não valemos nada quando somos vistos (e também quando nos vemos) apenas como aquilo ali, aquele ali, aquele dono daquilo, aquele que tem aquilo, aquele mais um. 
As nossas vozes não alcançam os ouvidos mais próximos. Sinto, agora, que não adianta gritar. E fico aqui esperando a próxima notícia: quem será o próximo?
Não sei se é a impunidade que provoca atitudes monstruosas (como por exemplo, a morte do Ezequiel). Preciso pensar sobre isso. O que sei, porque estou vivo (ainda) é que nós (re)produzimos valores e não damos conta de compreender como eles são absorvidos.
A vida não tem valor nenhum (só me resta pensar dessa maneira), ou o valor da vida é uma ida ao mercado. Não importa se eu sou um cara legal, se trato as pessoas com educação, se sou amoroso, se sou tranquilo, se sou alegre, divertido, se conto piada, se rio de mim mesmo. Nada disso conta mais do que a vontade de ter alguma coisa. Que besteira eu pensar que esses valores tivessem a força para impedir um tiro, um chute, umas facadas. Não têm.
Fica a sensação de impotência apenas. E a ela soma-se um vazio (e talvez seja isso sem nome) pálido. Fica também muito medo. Não fica nada que não seja tristeza.

domingo, 3 de outubro de 2010

Violência (texto)

A violência nos é familiar. Deparo-me com ela todos os dias. Basta entrar na internet, ler o jornal ou ouvir o noticiário da manhã. Portanto, ela não surpreende. Ela nos chega pelos quatro cantos com muita naturalidade.
No entanto, quando a violência aproxima-se muito de nós é que nos percebemos expostos, frágeis e sem saber exatamente (se é que isso seria possível) como se defender.
Acabei de receber a notícia da morte de um amigo. Ex aluno, 28 anos. Um cara divertido, inteligente, amigo e tudo aquilo que a gente acha dos próximos. Foi assassinado nessa madrugada em Marechal Cândido Rondon, oeste do Paraná. Não se sabe ao certo o que motivou o crime. Fala-se demais nesses momentos. 
É claro que a motivação não é importante (se isso ou aquilo não faz diferença porque o fato é fato), mas sempre é difícil compreender (não que uma explicação bastasse), acreditar, fazer sentido, quando não há um motivo aparente. Fala-se em assalto, mas não levaram o carro.
Estou aqui desde quando me chegou a notícia sem saber direito no que pensar, entrando e saíndo da internet tentando compreender o incompreensível. Atônito, absorto, arrebatado.

Verde de esperança de dias melhores (texto)

Justifiquei a minha ausência nas eleições, mas, sinceramente, não era isso que eu gostaria de ter feito. Queria ter dado o meu voto. Brigou-se tanto por democracia política e justifico meu voto? Uma pena!
Mas fazer o quê? O Rio de Janeiro não é logo ali e como, mais uma vez, achei que iria viajar para votar, não transferi meu título.
A justificativa começou bem cedo. Como sou um cara bem organizado eu sabia com toda a certeza capricorniana onde estava o título de eleitor. Não precisava  buscá-lo ontem à noite, justamente porque ele só podia estar num único lugar: no arquivo de documentos. Não estava! Como assim, não estava? Revira, retira, sacode, despeja, folheia, nada de título.
Encontrei justificativas antigas, fotos de amigos, documentos da minha mãe, caderneta da 6 série, cartão de vacina, vacina do cachorro, cpf (o bege), dispensa de incorporação (com uma foto impressionante e irreconhecível: tinha até cabelo, um bigode safado e uns pelos onde devia ter barba), certificados diversos, declarações seculares. Mas e o título? Na-da dele aparecer.
Apelei para quem? São Longuinho! Exatamente isso! O Padroeiro dos Desorganizados ou Esquecidos. Prometi, já que o assunto era sério, 15 pulinhos (veja bem, 15 pulinhos aos 45 (de idade e do segundo tempo) só poderia mesmo ser um assunto sério).
E, milagrosamente, eis que me lembro de um arquivo morto e enterrado. Finalmente encontro aquele documento verde de esperaça de dias melhores. Voto justificado. Dever mais ou menos cumprido.

Solidão na velhice...

A solidão na velhice é uma experiência profundamente marcada pela complexidade da existência humana. Com o passar dos anos, os vínculos soci...