domingo, 24 de julho de 2011

Heteroinquisidores: Se pai e filho agredidos por homófobos tivessem se 'confessado' gays, em vez de uma orelha decepada poderia haver dois cadáveres (Debora Diniz - O Estado de S.Paulo)

Minhas visitas à Índia são recheadas de descobertas culturais. Uma das que mais me fascina é a cena de homens de mãos dadas nas ruas. Ao contrário de nós, a expressão pública de afeto entre amigos é socialmente autorizada. Assim como meninas escolares no Brasil, os indianos de qualquer idade andam abraçados com seus colegas. A mesma intimidade entre homens, vi em vários países de tradição árabe. Aos homens, é permitido o toque como sinal de amizade. O curioso é que esse traço cultural não elimina a homofobia. Ao contrário, a homofobia é uma prática de ódio que convive com essas redescrições culturais sobre o corpo e o encontro entre os sexos. Entre nós, a novidade parece ser a de que nem mesmo o afeto entre pais e filhos será permitido pela patrulha homofóbica.
Um pai de 42 anos e um filho de 18 se abraçaram. De madrugada, cantavam juntos em uma festa ao ar livre no interior de São Paulo. Consigo imaginá-los felizes, razão para demonstrarem afeto mútuo. Foi o sinal para que dois homens desconhecidos perguntassem se eram gays. Insatisfeitos com a resposta negativa, saíram em busca de outros homens para iniciar a agressão. O pai teve parte da orelha decepada e o filho teve ferimentos leves. Pai e filho têm medo de represálias, pois os agressores estão pelo mundo, talvez orgulhosos da façanha ou, quem sabe, ainda sem entender por que não se pode agredir gays. Se tiverem algum senso de vergonha pelo ato, talvez seja o de ter confundido homens heterossexuais com gays.
A violência foi praticada com um ritual de confissão em dois atos: no primeiro, pai e filho deveriam declarar suas práticas sexuais para homens desconhecidos. Os homens homofóbicos são os inquisidores da heteronormatividade. Pai e filho negaram ser gays. Por alguma razão, a performance de gênero do pai e do filho não convenceu o grupo de homófobos. Eles buscaram reforço e retornaram com mais homens para silenciar aqueles que imaginavam ser representantes dos fora da lei heterossexual. No segundo ato, foram exigidas demonstrações de práticas homossexuais: pai e filho deveriam se beijar na boca para que os agressores vivenciassem a fantasia gay.
O primeiro ato do ritual homofóbico me leva a imaginar quais teriam sido as consequências de um "sim, somos gays" - uma autoafirmação entranhada em dois homens que não suportassem mais o tribunal homofóbico. Com essa resposta, talvez não estivéssemos diante de uma imagem de uma orelha parcialmente decepada, mas de dois cadáveres. Pai e filho foram vítimas da violência homofóbica. O curioso é que os dois não se apresentam como gays, mas como representantes da ordem heterossexual. Para os vigias homofóbicos, não importavam as práticas sexuais dos dois homens, mas a manutenção da ordem pública em que homens não devem se tocar. O interdito homossexual é tão poderoso que deveria impedir, inclusive, o contato físico entre pais e filhos.
Há outro ponto intrigante nessa história que é sobre como os homófobos se formam. Essa é uma inquietação a que qualquer aspirante a sociólogo responderia com uma tautologia: os fenômenos sociais não têm causa única. Mas aqui quero arriscar um caminho de compreensão. Os homófobos deste caso foram incapazes de diferenciar uma expressão de carinho paterno de uma prática erótica entre dois homens. Como hipótese, especularia que os agressores pouco receberam afeto de homens, seja de seus pais ou de outros homens de suas redes afetivas. Uma hipótese alternativa é a de que, se houve afeto paterno, esse foi mediado pelo temor homofóbico. Essa ausência levou os agressores a desconfiar do corpo de outros homens. Ao primeiro sinal de aproximação física, a defesa é a repulsa homofóbica.
Sei que essa explicação pode parecer reducionista para um fenômeno tão complexo e dependente da cultura patriarcal como é a homofobia. Mas é intrigante o erro do radar homofóbico dos agressores, o que sugere haver um equívoco de ponto de partida: eles parecem não ter sido capazes de identificar sinais corporais de algo tão fundamental quanto o amor paterno. Mesmo que não sejam ainda pais, não conseguiram se deslocar para o lugar de filhos que já foram ou ainda são. Aos guardiões da moral heterossexual, esse é um erro de diagnóstico que denuncia uma perturbação simbólica ainda mais fundamental.
Se minha hipótese for razoável, a mediação homofóbica na relação entre pais e filhos ou entre homens que se relacionam por vínculos de amizade ou convivência perpassa a socialização de gênero dos meninos. Os homens seriam treinados para evitar expressões de afeto e carinho por outros homens. Aqui volto à imagem da Índia para lembrar que o desejo de aproximação física entre homens não está inscrito nos corpos sexuados, mas é compartilhado pela cultura em que os homens vivem. Os homófobos se formam em casa, na rua, na escola. Em todos os espaços em que a fantasia homofóbica mediar a relação entre os corpos e afetos dos homens, a violência e a injúria contra os fora da lei heterossexual irão crescer.

DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

terça-feira, 19 de julho de 2011

A vida sobre um bueiro em Copacabana (texto e jogo)

As pessoas exageram. Nem é tão perigoso assim andar pelo Rio de Janeiro, além da dengue, das balas perdidas, dos bueiros que explodem e da cidade que transborda depois de 15min de chuva, o pior mesmo seria precisar de um hospital público para se tratar de algum desses males.
Ouvi dizer que uma grande empresa de software e uma fábrica de brinquedos lançará, em breve, um novo jogo em homenagem à cidade maravilhosa. É uma espécie de sobreviva se puder: vc ganha um tabuleiro e dados e vai tentando passar pelos obstáculos. Pule dois bueiros, tente se esquivar da bala perdida, volte duas casas, enfrente a fila daquele hospital público, agora nade duas ruas sem beber água ou engolir um rato morto. Tente encontrar uma lata de lixo no Centro da Cidade. Não encontrou? Volte três bueiros vigiados pela Light.
Ih, vc está sendo observado por PM´s. Pode jogar outra vez. Agora escolha ficar sobre um bueiro em Botafogo ou comer um peixe da Baia de Guanabara.
E os perigos não terminam por aí... vc acabou de encontra um deputado federal do Partido Progressista (PP) do Rio de Janeiro, se vc for gay, melhor encarar a Polícia Militar, se for hétero suba Santa Teresa de bondinho e se hospede no hotel cinco estrela com direito a arrastão. Mas não se preocupe, há a chance de vc cair num morro pacificado. Pule para a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), mas não convide um PM para um cafezinho. Caso insista, percorra à Tijuca em qualquer horário.
O jogo nunca termina. Há muitos obstáculos até vc conseguir sair de vez da cidade para residir em outra. Há tb a remota possibilidade de conseguir um Green Card para a Suíça. Às vezes o jogo te põe em xeque e faz vc decidir se mora na Grécia, na Itália ou em Portugal ou se permanece sobre um bueiro em Copacabana.
Boa sorte.

Homofobia é uma invenção: Homem tem orelha decepada em SP após jovens o julgarem gay (texto)

Segundo vítima, agressores pensaram que ele e o filho fossem um casal. Crime ocorreu durante exposição em São João da Boa Vista.
Um homem de 42 anos teve metade da orelha decepada após ser agredido por um grupo de jovens na madrugada de sexta-feira (15), em um centro de exposições de São João da Boa Vista, no interior de São Paulo. Segundo a vítima, os agressores pensaram que ele e o filho fossem um casal gay, pois os dois estavam abraçados.
O homem, que preferiu não se identificar, disse, nesta segunda-feira (18), que ainda estava traumatizado. De acordo com ele, depois de um show, um grupo de sete jovens se aproximou e perguntou se os dois eram gays.
Ele disse que eram pai e filho, mas houve um princípio de tumulto. Segundo o homem, os rapazes foram embora, voltaram cinco minutos depois e começaram a agredir os dois. Um deles mordeu e decepou parte da sua orelha. O homem desmaiou. “Na hora que eu acordei, as pessoas diziam que eu estava sem a orelha”, disse.
Ambos foram levados para a Santa Casa. O filho sofreu ferimentos leves. Eles foram atendidos e liberados.
Segundo Fernando Zucarelli, delegado do 1º DP de São João Boa Vista, foi aberto um inquérito para apurar o caso. A polícia tentará identificar os autores da agressão. A homofobia, que é a aversão a homosexuais, ainda não consta como crime no Código Penal brasileiro, mas, além da agressão, os jovens também podem responder por discriminação.
A organização da exposição diz que havia 150 seguranças no evento, além de policiais militares.
Acrescento apenas à esta matéria, retirada do G1, que esses jovens agressores não temem pelo crime praticado. Cometeram toda essa violência diante te tantas outras pessoas sem que isso fosse motivo para deixá-los inibidos, com medo de serem presos, pegos, de responderem pelo ato.
Acrescento ainda que Bolsonaros existem exatamente para isso: retirar do armário os homofóbicos de plantão.

domingo, 17 de julho de 2011

Ser gay (texto)

Ser gay é gostar de acordar cedo, tarde, não acordar, não dormir. Ser gay é gostar de ficar o tempo todo em casa, é gostar de ficar o tempo todo na rua, é não gostar de ficar o tempo todo fazendo a mesma coisa, é gostar de fazer o mesmo o tempo todo. Ser gay é ser branco, é ser preto, é ser amarelo, é ser de todas as cores. Ser gay é ser de cor nenhuma. Ser gay é nascer na América, mas tb se pode ser gay tendo nascido na Europa, na Ásia, na Oceania e tb na África. Ser gay é gostar de festa, de silêncio, não gostar de nada, gostar de tudo isso ao mesmo tempo. Ser gay é ser calmo, nervoso, ser calmo e nervoso. Ser gay é ser ansioso.
Ser gay é ser rico, ser pobre, não ser tão rico nem tão pobre, é ser miserável. Ser gay é estudar muito, é não estudar nada, é nem ter ido á escola, é ir de vez em quando, é já ter ido e não ir mais. Ser gay é ser sozinho, é ter companhia, é estar no meio de muita gente. É não estar nem aí.
Ser gay é ter namorado, namorada, é não namorar, é ser casado, ter filhos, mãe, pai, sobrinhos, avós, tios, primos, vizinhos, é ser viúvo. É ter cabelos pretos, loiros, azuis, vermelhos, é não ter cabelos. É ter cabelos lisos, crespos, encaracolados, curtos, longos.
Ser gay é saber falar diversas línguas, saber falar a sua língua, saber falar 2 línguas, não saber falar outra língua. Ser gay é ter modos, é incomodar. É morar perto, longe, é não ter onde morar.
Ser gay é ter muitos amigos, é ter poucos amigos, é não ter amigo nenhum. Ser gay é ser amigo, inimigo, bom, solidário, mal, egoísta, altruísta. Ser gay é ser gordo, magro, alto, baixo. Ser gay é ser feliz, alegre, triste, é ser inteligente, burro, lento, rápido, esperto. É saber tocar violão, é saber tocar o coração de alguém. Ser gay é ser humano.

sábado, 16 de julho de 2011

Da Série Contos Mínimos

Depois de um grande silêncio e de um branco muito claro, percebi que eu havia morrido. Não senti nada. Não houve dor alguma. Apenas um antes. Como se eu tivesse atravessado uma pequena ponte que me ligou a lugar nenhum. Fiquei por ali sem saber exatamente qual seria o próximo passo. Não houve um depois. Sem horas. Sem tempo. Sem fim.
Morrer não era assustador, nem triste. Não era nada. Era apenas a consciência de ter sido.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Quais são os melhores versos do cancioneiro popular? (Enquete)

Fico aqui aguardando as sugestões. Pra mim seriam os seguintes versos das músicas Segredo (Herivelto Martins e Marino Peixoto) "o peixe é pro fundo das redes/segredo pra quatro paredes/primeiro é preciso julgar/pra depois condenar"; de A flor e o espinho (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha) Tire seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor/Hoje pra você eu sou espinho/Espinho não machuca a flor".

Só vigia um ponto negro: o meu ciúme (texto)

Ciúme nada mais é do que o instinto de posse que ainda não foi educado.

O ciumento passa a vida a procura de um segredo que
possa destruir sua felicidadeAxel Oxenstierna (1612–1654)

Ciúme é a emoção usada pelo seu psiquismo como reação ao medo de perder. Tem gente que gosta de sentir ciúme, pois todas as emoções geram neurotransmissores e seu cérebro fica viciado neles da mesma forma como fica viciado em álcool, nicotina, cafeína, etc.
O ciúme, a expectativa, a carência e a decepção são pontos de chegada possíveis para o nosso medo de perder. O ciúme tem como subproduto a mentira, para evitar a reação ciúmenta do outro nós mentimos, pois o ciúme nos torna agressivos e como autopreservação o indivíduo mente.
Talvez se entendermos o porquê da necessidade da exclusividade em um relacionamento afetivo, possamos entender melhor a natureza do ciúme. Outro ponto a ser considerado é a sexualidade. Será que o amor é prisioneiro do sexo? Ou o sexo é prisioneiro do amor? Existem outras possibilidades?
Sou do contra, eu não endosso o costume popular de dizer que um pouquinho de ciúme é bom. Minha opinião pessoal é que o que não é bom para uma criança pequena não é bom para um adulto.
Quando uma criança pequena quase bate na outra que quis pegar algum de seus brinquedos o os mais velhos dizem: “que feio! Tem que emprestar!”, não obstante, basta a criança pegar algo do adulto para ele sentenciar: “isso é meu e não é para brincar!“. Ou seja, fala uma coisa, mas faz outra. Bem fácil de entender.
Quando você era pequeno sua mãe lhe ensinou a não ser ciúmento com seus brinquedos de criança. Está na hora de aprendermos a não ter ciúmes de nossos brinquedos de gente grande, não acha?

Retrospectiva: um modo de seguir adiante

Este é o penúltimo texto deste ano. Escrevi no meu blogue em 2025 do mesmo modo como vivi o ano: por aproximações sucessivas, sem um plano d...