domingo, 23 de junho de 2013

Da Série Contos Mínimos

A impressão era a de que tudo era pela última vez: o café com leite, a música no rádio, a voz no telefone. Ficava horas pensando no que não mais poderia fazer. Sentia saudade. As vezes parecia acordar e mais adiante mergulhava profundamente no mesmo lago.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Da Série Contos Mínimos

Todos os dias, sem exceção, ele lutava contra um cansaço crônico. Nada mais lhe dava prazer, mas não tinha coragem de acabar com a própria vida.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Da Série Contos mínimos

Morri. E como se morre sozinho, encontraram-me três dias depois, em casa. Possivelmente, após diversas ligações no celular, de muito recado na secretária eletrônica e  de insistentes batidas da porta do meu pequeno apartamento, no Centro da Cidade. Alguns e outros disseram, acho, que fui visto no último sábado. Que andava como se fosse viver para sempre. Assim como a gente faz todos os dias sem pensar que ali seria um dia derradeiro. Minhas coisas foram distribuídas, algumas descartadas. E não podia ser diferente. Era assim que deveria ser. No outro dia,  o sol nasceu como sempre fazia. 

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O que a Psicologia tem a dizer sobre a homossexualidade? (por Pedro Sampaio)


Embora possa parecer muito pretensioso falar em nome da Psicologia – ainda mais levando em conta a grande quantidade de abordagens em desacordo dentro dela -, acredito que seja possível fazer uma síntese geral sobre o que a Psicologia tem a dizer sobre a homossexualidade. Essa síntese terá de ignorar detalhes e especulações específicas de diferentes abordagens e se ater ao que até então temos bons motivos para acreditar. Com essa ressalva, no entanto, não pretendo blindar o meu texto de críticas e aguardo que meus colegas façam os apontamentos que acharem pertinentes.

Este texto é motivado pelo debate corrente a respeito da homossexualidade, oriundo principalmente dos conflitos ideológicos entre ativistas do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgênero) e algumas lideranças conservadoras e/ou religiosas. Nestes conflitos, muito foi dito sobre o tema e a Psicologia foi muito mencionada por ambos os lados. Não pretendia escrever nada a respeito, ainda mais agora que boa parte da poeira já baixou, mas observo que os equívocos consequentes de desinformações divulgadas por proponentes de ambos os lados têm se espalhado muito. Parece pertinente um texto razoavelmente simples e esclarecedor sobre o assunto.

A Polêmica

Dentre os conflitos ideológicos supracitados, o mais recente deles parece ter despertado mais atenção. O pastor Silas Malafaia fez declarações polêmicas em sua entrevista à Marília Gabriela, o que gerou apoio de um lado e críticas de outro.  Silas Malafaias é graduado em Psicologia e, embora jamais tenha explicitado que falava enquanto psicólogo e muito menos em nome da Psicologia, sua formação foi bastante utilizada, tanto por defensores quanto por críticos. Chegou a tal ponto que o CFP (Conselho Federal de Psicologia) emitiu uma nota de repúdio a respeito das declarações do pastor, acusando-o de ser “quase inquisitório”, “preconceituoso” e “homofóbico”.



O problema é que a nota do CFP é de cunho moral, adjetivando a posição do pastor e afirmando que vai contra “as lutas da Psicologia”, mas não explica quais motivos a Psicologia tem para afirmar que o pastor está equivocado e por que. O próprio pastor respondeu apaixonadamente (como é característico de suas declarações) à nota do CFP, acusando-a de distorcer suas declarações e ser movida por interesses políticos, não científicos. É com muito pesar que devo dizer que o pastor parece estar com a razão a esse respeito; o que significa que a nota do CFP foi um desserviço à causa que pretendia endossar.

A homossexualidade é de causa genética?

Dentre as respostas às declarações do pastor, a que provavelmente foi mais difundida foi a do geneticista Eli Vieira. Em vídeo, o geneticista seleciona trechos da fala do pastor e complementa ou corrige algumas afirmações que considera equivocadas, sempre se preocupando em referenciar suas afirmações através de artigos publicados em periódicos.

Tenho poucas ressalvas a fazer com relação ao vídeo[1] e considero que o autor do vídeo foi, no geral, muito feliz em suas colocações. Fiquei positivamente surpreso em como mais de uma vez ressalta que são contribuições dos genes para a orientação sexual e lembra sempre da igual importância do ambiente, da história de vida do sujeito.  Como a fala do pastor é frequentemente confusa, ambígua (em parte por utilizar incorretamente alguns termos), Vieira responde considerando que Malafaia estava tentando argumentar que não existe influência dos genes na orientação sexual. No entanto, uma interpretação alternativa é a de que o pastor tentava fornecer evidências contra o determinismo genético, contra um suposto inatismo da homossexualidade. Se esta era a intenção, ele foi bem sucedido; no entanto, como aponta Vieira, estaria atacando um espantalho, já que esta ideia não é defendida pelos principais geneticistas há muitas e muitas décadas.
Não é defendida pelos principais geneticistas...

Afinal, embora grande parte da comunidade científica rejeite essa ideia, muitas pessoas (inclusive cientistas) parecem acreditar que a homossexualidade é sim determinada geneticamente e algumas inclusive entenderam que o geneticista argumenta a favor disso.  A crença de que a homossexualidade é inata, ou seja, que alguém já nasce homossexual, existe e foi difundida, em parte, pela má divulgação científica – um problema que já mencionei em outro texto.  



Então, se a crítica de Silas Malafaia é inócua para a maior parte da comunidade científica (careca de saber que determinismo genético é bobagem), é bastante pertinente para o público geral – e dificilmente a maioria dos telespectadores do programa da Marilia Gabriela, onde fez as declarações, é de cientistas com noções básicas de genética. Tanto Malafaia quanto os demais religiosos que afirmam que “ninguém nasce gay” estão corretos e as evidências suportam esta afirmação.

Há muitos e muitos motivos pelos quais esta afirmação está correta e devidamente fundamentada, mas, como apontou o pastor, basta citar os dados de pesquisas que apontam que mais da metade dos gêmeos monozigóticos de homossexuais são heterossexuais. Isso quer dizer que pessoas com exatamente a mesma carga genética frequentemente têm orientações sexuais diferentes. Não importa se este número é, como polemiza Eli Vieira, 68%, 50% ou sequer se fosse apenas 10%: qualquer número que não seja igual ou muito próximo a 0% de discordância é evidência suficiente de que a homossexualidade não é determinada pelos genes.

No entanto, a parte que Malafaia e tantos outros decidem ignorar, é que ninguém nasce heterossexual também...

Ok, talvez esse aí tenha nascido homossexual.


Freud explica

Afinal, como brilhantemente apontou Freud, se vamos nos indagar sobre as causas da homossexualidade, é igualmente pertinente nos indagarmos sobre quais são as causas da heterossexualidade, já que "[...] o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidencia indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química". (Freud, 1905/1969d, p.137).

O argumento de que a homossexualidade não é natural porque não leva à reprodução, não apenas ignora um grande número de comportamentos sexuais que também não levam à reprodução (sexo com métodos contraceptivos, sexo em períodos inférteis, sexo com pessoas inférteis, sexo após a menopausa, sexo anal, masturbação, polução noturna, etc.) como pressupõe que o instinto sexual tem como objetivo a reprodução. Dizer que o instinto sexual tem um objetivo já é certamente incorreto (é um pensamento teleológico, incoerente com a seleção natural), mas, mesmo se tivesse, este não seria a reprodução, mas apenas sua satisfação – como também apontava Freud (Katz, 1996).

Ou podem parar de tomar a pílula. Não é natural.


Ironicamente, Silas Malafaia procura usar Freud para endossar seu ponto de vista de que a homossexualidade deve ser tratada, afirmando que o pai da psicanálise tratou a homossexualidade de uma garota, transformando-a em heterossexual ao final da análise. O pastor só pode estar se referindo ao texto "A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher" (Freud, 1920) e não poderia estar mais equivocado. O enganoso título do texto se deve ao fato de que a garota chegou à análise trazida pelos pais, que disseram que ela vinha tendo pensamentos homossexuais. Parece que a leitura do pastor parou por aí. Freud mais de uma vez afirma que “a homossexualidade, em si mesma, não constitui condição de análise”, mas que a jovem, que nunca havia tido um interesse homossexual, se viu obcecada por outra mulher, de modo que:
“Nem as proibições nem a vigilância impediam a jovem de aproveitar todas as suas raras oportunidades de encontrar-se com a bem-amada, de verificar todos os seus hábitos, de esperar por ela durante horas diante de sua porta ou numa parada de bonde, de mandar-lhe presentes ou flores, e assim por diante. Era evidente que esse interesse único havia engolfado todos os outros na mente da jovem. Não se preocupava mais com os estudos, não se interessava por funções sociais ou prazeres de moça e mantinha relações apenas com algumas amigas que podiam auxiliá-la na questão ou servir-lhe de confidentes”. (Freud, 1920, p.95)

Qualquer psicólogo concordaria que há aí demanda para uma psicoterapia: a obsessão da garota, que a tem atrapalhado em todas as demais esferas de sua vida, e não a homossexualidade – como, novamente, também apontava Freud. Com o decorrer da análise, cessaram-se os pensamentos obsessivos a respeito da moça e, consequentemente, a “homossexualidade”.

Ou o pastor Malafaia é completamente ignorante a respeito do texto freudiano, ou incorreu em uma gritante desonestidade intelectual ao ignorar tudo isso e interpretar o texto como interpretou. Principalmente se levarmos em conta que, com relação à homossexualidade, Freud era certamente um homem à frente de sua época. Além do já citado, existem vários textos nos quais ia frontalmente contra a postura da época a respeito das orientações não heterossexuais, mas não prolongarei demasiado este ponto. Basta lembrar que para Freud a homossexualidade é tão natural quanto a heterossexualidade e foi militante em sua época, fazendo frente a seus colegas que se recusavam a dar o título de psicanalista a homossexuais (Badinter, 1993), assinando uma petição pela revisão do código penal e a supressão do delito da homossexualidade entre adultos que consentem (ibid), dentre outros. Não esqueçamos também que em 1935, ele escreve uma carta endereçada a uma mãe norte-americana que havia lhe solicitado ajuda em relação às condutas e comportamentos que ela considerava anormais por parte de seu filho. Ao que Freud respondeu:
“Eu creio compreender, após ler sua carta, que seu filho é homossexual. Fiquei muito surpreso pelo fato que a senhora não mencionou esse termo nas informações que deu sobre ele. Posso eu, vos perguntar por que evitou esta palavra? A homossexualidade não é evidentemente uma vantagem, mas não há nada do que sentir vergonha. Ela não é nem um vício, nem uma desonra e não poderíamos qualificá-la de doença. (...) Muitos indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos, foram homossexuais (Platão, Michelângelo, Leonardo da Vinci, etc). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como crime e também uma crueldade”. (Freud, 1935/1967, p.43).

Vocês têm ideia do que era escrever isso em 1935?



A homossexualidade é “apenas um comportamento”?

Como dito, para a Psicologia contemporânea não nascemos com uma orientação sexual e a homossexualidade é tão natural quanto a heterossexualidade, a bissexualidade e quaisquer outras orientações sexuais, e também tão natural quanto ser destro ou canhoto. Assim como qual mão você tem como sua mão hábil, a homossexualidade não é apenas inata ou “apenas comportamento” (como afirma Malafaia) – tampouco é só uma “escolha”. Afinal, para a psicologia contemporânea poucas coisas são inatas e nada é “apenas comportamento”. Explico.

Grosso modo, funciona assim:
1. O organismo nasce com uma carga genética que determinará como ele responderá a determinados estímulos.
2. Parte dos genes apenas será “ativada” ao longo da vida deste organismo, alguns podendo até nunca se manifestarem, por precisarem de um contexto – um estímulo, um conjunto de estímulos – específico para que isso ocorra.
3. A partir do momento em que nasce (e até antes disso, com acontecimentos intrauterinos) o organismo passa a modificar o mundo e ser modificado por ele.

Nossas ações, pensamentos e sentimentos são, portanto, resultado da ininterrupta interação entre nosso organismo e as coisas que lhe acontecem.  Quando se trata de nossos comportamentos, não somos nem biologicamente determinados nem psicologicamente determinados, mas frutos desta relação. Posso aprender a distinguir diversos sons (como aprender as notas musicais) que eu não distinguiria só por ter nascido, mas jamais conseguirei ouvir frequências de sons que meu ouvido não é capaz de captar. Posso, ao contrário da maioria das pessoas, ter genes que facilitam que eu seja mais habilidoso com a mão esquerda, mas ser destro se fui muito repreendido quando utilizei a mão esquerda para escrever ou sequer conhecer esta minha facilidade com a mão esquerda se nunca foi me dada essa possibilidade e jamais a utilizei para estes fins.

As pesquisas que mostram o funcionamento cerebral de homossexuais masculinos como semelhante ao de heterossexuais femininas e o de homossexuais femininas como o de heterossexuais masculinos (Savick et AL, 2008), no máximo observam como o cérebro se comporta quando alguém se sente atraído por homens ou mulheres. Não se trata de uma explicação da homossexualidade, mas de uma observação topográfica a nível fisiológico. O mesmo se aplica ao estudo que indica que homossexuais masculinos são mais sensíveis a androsterona (Lübke et AL, 2009) – um hormônio derivado da testosterona, que é um hormônio ligado ao desenvolvimento e à manutenção de características masculinas. Mesmo ignorando controvérsias e questões metodológicas e epistemológicas, a não ser que essa diferença seja significativamente observada desde o nascimento, observar essa maior sensibilidade pode não ser diferente de observar maior sensibilidade ao cheiro da coca-cola por parte de grandes apreciadores da bebida, ou maior capacidade de perceber nuance de cores por parte de críticos de arte. Estes e muitos outros podem ser explicados por um processo chamado condicionamento operante e os indivíduos não nascem desta forma, mas passam, devido a coisas que lhes acontecem, a funcionar desta forma.

Olhem só que delícia o meu cheiro de homem.

Mesmo se constatarem que, desde o nascimento, indivíduos que viriam a tornarem-se homossexuais eram mais sensíveis a androsterona, ainda assim não implicaria em inatismo da homossexualidade; apenas em inatismo da maior sensibilidade a androsterona. É possível e até bastante provável que muitos homossexuais compartilhem esta e/ou outras características inatas (consequentemente, genes ligados a estas características), e que estas mesmas características apareçam com uma frequência bem menor em heterossexuais. Isso indica que os indivíduos com estas características têm maior probabilidade de, na sua interação com o seu meio ao longo de sua vida, tornarem-se homossexuais. Da mesma forma que indivíduos com outras características, nem melhores nem piores, têm maior probabilidade de, na sua interação com o meio ao longo de sua vida, tornarem-se heterossexuais. E idem a qualquer orientação sexual.

Quando falo em probabilidade é principalmente porque, assim como no exemplo dos canhotos que dei anteriormente, alguém pode ter as características inatas que foram observadas em vários homossexuais e ainda assim não ser homossexual. Por motivos diversos: pode ter nascido em um meio tão repressor que puna qualquer contato homoafetivo, suprimindo este comportamento; pode também sentir atração pelo sexo oposto, ter se envolvido com uma pessoa do sexo oposto e seguir princípios monogâmicos; pode ter tido experiências muito traumáticas com pessoas do mesmo sexo e passar a sentir repulsa por estas; etc. E, pelo mesmo princípio, pessoas sem estas características inatas podem vir a se orientarem como homossexuais se, por exemplo, tiverem experiências muito prazerosas que estão associadas a pessoas do mesmo sexo; se, mesmo podendo sentir atração por ambos os sexos, estiver em uma relação monogâmica com alguém do mesmo sexo, ou, por motivos diversos (que não fatores biológicos), sempre ter tido relacionamentos homossexuais; se tiver experiências traumáticas com o sexo oposto e frequentar um meio que incentiva e recompensa relações homossexuais; etc.


Mas é possível alguém deixar de ser homossexual? É possível uma terapia de reorientação sexual?

Hora de novamente desagradar a gregos e troianos: tudo indica que sim, é possível.

LINCHA ELE!!!

Mas isso porque, como estou tentando explicar, a orientação sexual é algo mais complexo do que características inatas ou uma “escolha”. Dizemos que alguém tem determinada orientação sexual numa interseção entre como ele se comporta e, principalmente, como ele se vê. Se alguém diz que não é mais homossexual porque não mais tem relações com pessoas do mesmo sexo e não se considera mais homossexual (por vezes dizendo nem sentir mais atração por pessoas do mesmo sexo), então não há nada que nos legitime dizer que ele ainda é homossexual ou que “no fundo” ainda o é. E existem muitas pessoas que se dizem ex-gays.

A meu ver, a principal questão a respeito das terapias de reorientação sexual não é se conseguem alterar a orientação sexual ou não, mas sim por que deveríamos fazer isso e se deveríamos fazer isso.

Estas não são questões estritamente científicas, mas morais, éticas e, mais especificamente, deontológicas. Há quem acredite que a ciência não pode arbitrar questões como estas, pois o papel da ciência seria descrever como as coisas são e não como elas deveriam ser. Este problema é conhecido na Filosofia como A Guilhotina de Hume. Contudo, mesmo se a ciência não puder arbitrar estas questões, parece autoevidente que suas constatações podem ao menos contribuir substancialmente para o debate.

A respeito do por que, é relevante ressaltar, por exemplo, que quase todos proponentes das terapias de reorientação sexual são religiosos que justificam sua reivindicação com base em doutrinas religiosas. Estas doutrinas geralmente se referem à homossexualidade como “abominação”, “não natural” ou “doença”. Como já foi esclarecido, a Psicologia não dá respaldo para a crença de que a homossexualidade seria uma abominação ou não natural, pelo contrário, traz evidências do exato oposto e, em parte por este motivo, há décadas não mais a entende como uma patologia. Seria um contrassenso uma terapia com objetivo de tratar algo que, por si só, não tem justificativa para ser tratado - a não ser a desaprovação moral de um grupo de pessoas. Seria algo análogo a propor uma terapia que trate o gosto por música porque um grupo de pessoas (por maior que seja) acha que gostar de música é errado.

Por isso mesmo, alguns proponentes dessa terapia tentam convencer com a alegação de que alguém pode sofrer com sua homossexualidade, como as próprias pessoas com convicções religiosas que condenam a homossexualidade, e querer, por vontade própria, se ver livre de seus desejos homossexuais. Este para mim é o argumento mais forte a favor das terapias de reorientação sexual. Mesmo assim, não é lá muito bom. Pois vejamos:
- Pelas razões já expostas, temos fortes motivos para acreditar que sempre existirão pessoas homossexuais ou no mínimo com fortes desejos homossexuais.
- Se a homossexualidade por si só não gera sofrimento, a principal causa do sofrimento com a condição homossexual é justamente a injustificada condenação da qual é alvo.
- Ao legitimar a terapia de reorientação sexual, mesmo se aliviarmos o sofrimento do nosso paciente, estaríamos contribuindo para a manutenção das convicções que condenam injustificadamente a homossexualidade e, consequente, produzem grande sofrimento em tantos outros homossexuais que existem ou ainda existirão. Estaríamos optando por consentir com aquilo que causa tanto sofrimento e suprimindo aquilo que é natural. Alimentaríamos o ciclo de sofrimento sendo que podemos contribuir para seu fim.

O leitor atento talvez já tenha percebido que já estou tocando na segunda questão que considero central, a de se deveríamos fazer a terapia de reorientação sexual. Afinal, quais são as consequências desta terapia para o indivíduo?

A maior pesquisa já feita sobre esta questão foi conduzida pela APA (American Psychological Association) e traz dados assustadores. Há muitos relatos de que indivíduos que passaram por terapias de reorientação sexual passaram a apresentar depressão, confusão mental, disfunções sexuais, drogadicção, automutilação, ansiedade, abulia, pensamentos suicidas, dentre outros (APA, 2009, p.41-42). Mesmo pesquisas conduzidas por adeptos da terapia de reorientação sexual admitem que em cerca de 50% dos casos há consequências danosas para o paciente (IBID).

Mesmo quando é feita uma intervenção precoce, na infância, para tentar evitar a homossexualidade, as consequências são nefastas. O norte-americano Kirk Murphy, por exemplo, apresentava, quando criança, muitos comportamentos considerados afeminados. Aos cinco anos de idade, foi submetido a um tratamento que visava suprimir os comportamentos afeminados e estimular comportamentos considerados masculinos. O objetivo foi alcançado: a criança passou a comportar-se tal qual era esperado que um menino se comportasse e o caso foi publicado em um prestigiado periódico – e este artigo é referência para os defensores da terapia de reorientação sexual. Entretanto, Kirk tornou-se depressivo, ansioso, incapaz de ter qualquer tipo de envolvimento sexual e seu intenso sofrimento culminou em seu suicídio, aos 38 anos (se entende inglês, pode assistir a um programa que detalha mais o caso, clicando aqui).

Kirk Murphy quando criança e, ao lado, já adulto.

Estes resultados não são inesperados. Pelo menos desde Freud, a Psicologia reconhece que a sexualidade tem um imenso papel em nossas ações e bem-estar. Anteriormente, fiz analogias entre a homossexualidade e o canhotismo, para ilustrar outros pontos; no entanto, suprimir a homossexualidade tem consequências de proporções muito maiores do que suprimir o canhotismo. O ex-canhoto pode ter maior dificuldade para conseguir ter a letra bonita ou em outras atividades que exijam coordenação motora fina; em contrapartida, o ex-gay será privado de algo que compõe boa parte do que ele é – em outras palavras, será privado de si mesmo. Será que se deve legitimar uma terapia que, além de tudo, tem boas chances de trazer mais malefícios ao paciente do que benefícios?

Conclusão

Sintetizando o que foi apontado ao longo do texto, podemos entender que, para a Psicologia, a sexualidade humana é mais complexa do que imaginam malafaias e inatistas. Ela tem bases biológicas, mas não existe orientação sexual sem interação com o ambiente: sem uma história de vida, o que engloba sua família, amigos, sociedade e tudo o mais que o cerca. Freud, ao contrário do que insinua o pastor Silas Malafaia, não defendia a reorientação sexual, nem “tratava” a homossexualidade; muito pelo contrário. A homossexualidade não é mais “abominação” ou “não natural” do que a heterossexualidade. A homossexualidade, por si só, não produz sofrimento no indivíduo e a maior causa de sofrimento com relação à própria sexualidade entre homossexuais é justamente a condenação infundada que sofre em seu meio. É possível que as terapias de reorientação sexual consigam alterar a orientação sexual de alguém, mas há boas chances de que não sejam bem-sucedidas e produzam mais sofrimento do que alívio, com alta probabilidade de gerarem graves danos psicológicos.

Psicólogos que praticam ou advogam pela terapia de reorientação sexual estão ignorando todos estes fatos. Ou então estão sendo tão coerentes quanto médicos que, vivendo em uma cultura racista, concordam em retirar toda a pele de seus pacientes negros, substituindo-a por uma pele branca, em um perigoso procedimento que visa aliviá-los das mazelas decorrentes do preconceito.
Nota:
[1] Uma das críticas mais pertinentes ao vídeo do Eli Vieira, ressalta o papel da cultura na homossexualidade e como o debate deve se dar mais na esfera dos Direitos Humanos. Ela pode ser lida clicando aqui.
Referências:

APA, Report of the Task Force on Appropriate Therapeutic Responses to Sexual Orientation. Washington, DC: American Psychological Association, 2009.

Badinter, E. XY: Sobre a identidade masculina. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1993.

Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 7). Rio de Janeiro: Imago.(Originalmente publicado em 1905).

Freud, S. A psicogênese de um caso de homossexualidade numa mulher. Obras completas, ESB, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago.  (Originalmente publicado em 1920)

Freud, S. Lettre de Freud à Mrs N. N...: Correspondance de Freud 1873-1939. Paris: Gallimard. (Originalmente publicado em 1935).

Katz, J. A invenção da heterossexualidade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

Lübke, Katrin, Sylvia Schablitzky, and Bettina M. Pause. Male Sexual Orientation Affects Sensitivity to Androstenone. Chemosensory Perception 2, no. 3, September 1, 2009.

Savic, Ivanka, and Per Lindström. PET and MRI show differences in cerebral asymmetry and functional connectivity between homo-and heterosexual subjects. Proceedings of the National Academy of Sciences 105, no. 27. 2008.

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