terça-feira, 27 de outubro de 2009

Cantiga de enganar - por Carlos Drummond de Andrade (poesia)

Cantiga de enganar

O mundo não vale o mundo, meu bem.
Eu plantei um pé-de-sono,
brotaram vinte roseiras.
Se me cortei nelas todas
e se todas me tingiram
de um vago sangue jorrado
ao capricho dos espinhos,
não foi culpa de ninguém.
O mundo, meu bem, não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
Há muito aprendi a rir,
de quê? de mim? ou de nada?
O mundo, valer não vale.
Tal como sombra no vale,
a vida baixa... e se sobe
algum som deste declive,
não é grito de pastor
convocando seu rebanho.
Não é flauta, não é canto
de amoroso desencanto.
Não é suspiro de grilo,
voz noturna de correntes,
não é mãe chamando filho,
não é silvo de serpentes
esquecidas de morder
como abstratas ao luar.
Não é choro de criança
para um homem se formar.

(...)

Não é nem isto, nem nada.
É som que precede a música,
sobrante dos desencontros
e dos encontros fortuitos,
dos malencontros e das
miragens que se condensam
ou que se dissolvem noutras
absurdas figurações.
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta.
de sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
de escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
— mas a conta não existe —
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
façamos mundos: ideias.
Deixemos o mundo aos outros
já que o querem gastar.
Meu bem, sejamos fortíssimos
— mas a força não existe —
e na mais pura mentira
do mundo que se desmente,
recortemos nossa imagem,
mais ilusória que tudo,
pois haverá maior falso
que imaginar-se alguém vivo,
como se um sonho pudesse
dar-nos o gosto do sonho?
Mas o sonho não existe.
Meu bem, assim acordados,
assim lúcidos, severos,
ou assim abandonados,
deixando-nos à deriva
levar na palma do tempo
— mas o tempo não existe,
sejamos como se fôramos
num mundo que fosse: o Mundo.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Mensagem de uma amiga (texto)

Prezado Alexandre,

Fiquei sabendo de sua grande perda. Nessa hora, como diz o Drummond:

"O mundo, meu bem, não vale
a pena, e a face serena
vale a face torturada.
(...) Façamos, meu bem, de conta.
De sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
de escolher nossas lembranças
e revertê-las, acaso
se lembrem demais em nós".

Alexandre: as mães não morrem. Elas ficam por aí, piscando o olho pra gente - "cuidado, menino"; "ponha o casaco"; "vai mais um café, meu filho?", iluminando de memória o que a vida nos reserva. De memória e de ternura, pode crer.

Um abraço, com carinho, Bea.

(Publiquei sem pedir autorização...)

domingo, 25 de outubro de 2009

Aos meus amigos (texto)

Sei que não é fácil dizer quando não existem palavras que, aparentemente, possam fazer algum sentido para alguém que perde alguém que ame muito. Não é fácil mesmo traduzir os sentimentos (talvez isso seja possível apenas nas poesias).
É claro tb que nada que se diz pode fazer o tempo voltar atrás e nos dar outra oportunidade para novas escolhas. Ah, se eu pudesse voltar uns dias... Isso é impossível!
No entanto, dizer, ainda que não produza a viagem de volta ao passado, afaga o nosso coração. Nos sinaliza que não estamos tão sozinhos e que podemos contar com o outro.
Sei que tenho muitos amigos. Nunca tive dúvida disso. Mesmo. E nessa semana eu pude perceber o quanto as pessoas se importam de verdade com o que aconteceu, com o que está acontecendo.
Eu quero agradecer as mensagens postadas aqui, as deixadas no orkut, as enviadas para o meu e-mail pessoal, para o meu celular, os telefonemas, as preces. E dizer tb que elas me confortam muito.
Foram tantos os abraços, beijos, carinhos na careca, sorrisos, mãos dadas como sinais de amizade.
Meus queridos todos. Obrigado muito pela força nesses dias.

Voltando para casa (texto)

Vim ao Rio não para me despedir da minha mãe, mas para ficar com ela. Mas ela morreu antes de eu chegar. Assim é a vida, enquanto vc pensa em outras coisas, ela acontece. Complicado essa situação e ainda não consigo estimar o que pode acontecer nos próximos dias. Sei apenas que estou voltando para a minha casa e sei também que ando com muito medo de estar sozinho. Preciso voltar porque tudo continua continua apesar de.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Polícia Bandida (texto)

Toda generalização é burra (talvez esta aqui tb seja)! No entanto, tenho acompanhado nesse ano de 2009, só para ser mais preciso, denúncias e provas contra policiais militares/civis em relação ao envolvimento deles com o crime organizado (traficantes de drogas, milícias etc.) e à violência contra a população (seja através dos crimes cometidos pelos próprios policiais, seja através de omissão de socorro).
O caso da Advogada Patrícia, por exemplo, não é um episódio isolado envolvendo PM's. Ou ainda a violência contra os moradores de comunidades carentes de norte a sul do país. O que tem acontecido é que as denúncias ficam sempre no embate entre o que diz a PM e a população.
Dessa vez, com o caso do coordenador do grupo AfroReggae, Evandro João da Silva, 42 anos, câmeras de segurança filmaram todo o desserviço desses 'policiais'. Contra essas imagens nada pode ser negado: não são mais os moradores favelados 'protegendo' bandidos nos morros, são provas definitivas de que alguns policiais estão, protegidos por suas fardas e patentes, agindo como bandidos.
Dizer que, especificamente nesse caso, os policias tiveram um desvio de conduta é, no mínimo, desrespeito com a população. A falta de providência das autoridades seria, sem dúvida, a desmoralização dessa Instituição. Ou aproveita-se essa oportunidade para reorganizar a coorporação ou não se tem mais jeito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

1942-2009 Helô (texto)

Escrever sobre a minha mãe não é uma tarefa difícil: estivemos juntos por 44 anos anos, fosse na mesma casa, ou via telefone, cartas, pensamentos ... tudo isso me dá autoridade suficiente para dizer sobre ela. Mas não o farei agora. Terei outras oportunidades para lembrar como foram todos esses tempos. Agora, retomo, um pouco, a forma como uma amiga descreveu a minha mãe numa oração que ela propôs um pouco antes do seu sepultamento. Foi mais ou menos assim. Heloísa através de Teresa: "D. Heloísa foi uma mulher além do tempo dela, além no sentido de iluminação, de grandeza de alma que se traduzia em compreensão, tranquilidade, espera, sabedoria e bom humor. Ela está ou estará logo em um lugar para essas almas que transformaram a luta da vida em dedicação ao trabalho, à família, ao companheiro de mais de 30 anos, à dignidade, à honestidade, ao trato delicado para lidar com o outro. Aprendi muito com ela e continuei aprendendo mesmo nesses últimos meses tão sofridos. Ele se manteve serena apesar de tudo."
Sou um cara de sorte por ter vindo ao mundo através de uma mulher dessa categoria. Tomara eu tenha apreendido alguma dessas virtudes.
Agradeço a todos que deixaram aqui suas mensagens ou que via e-mail me desejaram força, paz, tranquilidade para enfrentar essa novidade.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Mãe


Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
(Carlos Drummond de Andrade)

Solidão na velhice...

A solidão na velhice é uma experiência profundamente marcada pela complexidade da existência humana. Com o passar dos anos, os vínculos soci...