terça-feira, 18 de março de 2025

Entre o antes e o agora

A saudade é feita de marcas e pistas que o tempo não apaga. Está no cheiro do café esquecido na mesa como uma presença que não se pode tocar. É um aroma que invade sem pedir licença, carregando consigo histórias, diálogos interrompidos, gestos que ficaram suspensos. No abraço que não veio, ela se inscreve como um frio na pele, uma falta no corpo, um espaço onde antes cabia um outro e que agora é só espera. Cada ausência se faz sentir no detalhe mínimo, na curva de um olhar que se perdeu no tempo, na voz que já não responde, mas que ainda ressoa.

Há saudades que se fixam em imagens, em fotografias amareladas pelo tempo, teimosas em conter aquilo que a vida levou adiante. Os olhos de ontem nos encaram do papel, congelados no instante que já não volta, e nessa prisão do tempo, a saudade sussurra histórias que insistem em ser contadas. Mas a ausência não é um vazio absoluto: ela se move, pulsa, se esconde entre o antes e o agora, como se cada lembrança fosse um fio que nos mantivesse ligados ao que já não está, mas que também nunca deixou de ser. No silêncio, a saudade escreve diálogos invisíveis, faz perguntas ao passado e, sem pressa, espalha suas respostas entre os dias.


Ela dança no escuro, traçando silhuetas de memórias que se recusam a desaparecer. Há noites em que os nomes sopram de leve na madrugada, como se o tempo permitisse que, por um instante, o passado nos tocasse de novo. A ausência é um gesto que continua, um fio que nunca se rompe. O que foi, de algum modo, ainda é – entre sombras e lembranças, na dobra do tempo onde a saudade segue existindo, fiel ao que um dia nos fez sentir vivos.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Aprender a lidar com a inquietante constatação de que não somos transparentes para nós mesmos


Saber sobre si é um processo complexo e, na psicanálise freudiana, não se reduz à consciência racional que temos de nós mesmos. Sigmund Freud mostrou que o sujeito não é senhor absoluto de seus pensamentos e ações, pois está atravessado pelo inconsciente, essa instância que escapa ao controle e que carrega desejos, conflitos e memórias reprimidas. O autoconhecimento, portanto, não se dá por um simples ato de reflexão, mas por um trabalho de escuta e interpretação, onde o sujeito pode se confrontar com o que nele resiste à compreensão imediata. Assim, conhecer-se implica lidar com a inquietante constatação de que não somos transparentes para nós mesmos, que há em nós um estrangeiro, um outro que nos habita e que, muitas vezes, nos surpreende em nossos gestos e palavras.

Essa impossibilidade de totalizar-se é atravessada também pela constatação de que não somos apenas bons ou maus, que o humano não pode ser reduzido a categorias estanques de pureza ou perversidade. Freud, ao formular a teoria da pulsão, mostrou que o desejo não se organiza de forma moral, mas sim como um campo de forças em conflito, no qual impulsos contraditórios coexistem. O sujeito não se define por uma essência fixa de bondade ou maldade, mas por sua relação com esses impulsos, suas escolhas e seus deslocamentos no campo do desejo. É nesse sentido que a psicanálise desestabiliza certezas e mostra que a construção do eu é marcada pela ambivalência, pelo conflito entre os ideais do supereu, os impulsos do id e as tentativas do ego de mediar essas forças.

Não ser apenas isso ou aquilo, portanto, é do humano. A identidade não é um bloco coeso, mas um campo de tensões, atravessado por discursos, afetos e desejos que não se fecham em uma única definição. Se, por um lado, há um anseio por coerência e unidade, por outro, há uma irredutível dispersão, uma incompletude constitutiva que nos mantém em movimento. Freud nos ensina que o sujeito é dividido e que aceitar essa divisão é parte do processo de lidar com o mal-estar que nos habita. O reconhecimento de que não somos inteiramente bons ou maus, de que não há uma identidade definitiva a ser alcançada, abre espaço para a ética da escuta e para a possibilidade de viver com a alteridade em nós mesmos e nos outros.

segunda-feira, 3 de março de 2025

O Conservadorismo da Classe Trabalhadora e o método da Direita



A classe trabalhadora, historicamente explorada e precarizada, muitas vezes vota em políticos de direita e extrema-direita que, na prática, retiram seus direitos e aprofundam desigualdades. Essa contradição aparente pode ser compreendida a partir da intersecção entre economia e valores culturais. Enquanto políticos progressistas defendem pautas trabalhistas, a direita compreende que grande parte da classe trabalhadora tem valores conservadores – em relação à família, sexualidade e religiãoe usa essa identificação como ferramenta eleitoral. Em um cenário onde a ideologia dominante apaga as relações de exploração, a identificação com discursos morais e nacionalistas sobrepõe-se à defesa dos próprios direitos trabalhistas.

Líderes da direita e extrema-direita, como Nikolas Ferreira, por exemplo, utilizam discursos religiosos, nacionalistas e anti-progressistas para mobilizar a classe trabalhadora. No entanto, essa aproximação ideológica esconde medidas que prejudicam diretamente os trabalhadores. O próprio Nikolas votou contra a isenção de impostos sobre 40 alimentos essenciais, dificultando o acesso da população a produtos básicos, além de apoiar a manutenção de jornadas exaustivas, como a escala 6x1, e a taxação de compras internacionais, afetando diretamente o consumo popular. Essas decisões demonstram que, apesar do apelo moral e religioso, suas políticas reforçam a exploração e o empobrecimento da classe que o elegeu.

A adesão da classe trabalhadora a políticos da direita se sustenta, em grande parte, na forma como o discurso desses políticos se estrutura. Eles não falam de economia em termos técnicos, mas em chavões morais e identitários. A esquerda, por outro lado, muitas vezes se comunica com a classe trabalhadora de maneira distante ou centrada em pautas que, embora essenciais, não são percebidas como prioridade pelos trabalhadores. O trabalhador não vê, necessariamente, um vínculo direto entre melhores condições salariais e sua identidade moral ou religiosa, mas percebe esse vínculo quando um político da direita se apresenta como “defensor da família” ou como alguém que combate uma suposta “ameaça comunista”. Assim, as pautas trabalhistas são ofuscadas por narrativas afetivas e identitárias.

Esse método da direita não é novo, mas tem se mostrado cada vez mais eficaz, especialmente em tempos de crise econômica e de descrédito nas instituições. Enquanto a esquerda enfrenta o desafio de se reconectar com os trabalhadores sem abrir mão de suas pautas sociais, a direita continua a se fortalecer explorando sentimentos de medo e pertencimento. Assim, a classe trabalhadora segue votando contra si mesma, sem perceber que os políticos que se apresentam como seus aliados na moralidade são os mesmos que destroem seus direitos e condições de vida.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Roberta Flack: um diálogo entre o silêncio e o som


Hoje, nos despedimos de uma artista cuja voz transcendeu as fronteiras do tempo e do espaço, tocando os corações de milhões com sua sensibilidade ímpar. Roberta Flack foi mais que uma cantora: foi uma mestra na arte de transformar o som em sentimento, oferecendo ao mundo uma escuta atenta às nuances da existência e às contradições da alma humana.

No palco da vida, sua música atuava como um discurso que questionava e, ao mesmo tempo, acolhia as múltiplas camadas do ser. Cada canção carregava a marca de uma interpretação que ia além da estética, desafiando os discursos hegemônicos e revelando a complexa relação entre a experiência pessoal e as formações discursivas históricas. Em sua voz, o silêncio e o som dialogavam, iluminando as opacidades que habitam a linguagem e a subjetividade.

A partida de Roberta Flack deixa um espaço irreparável no cenário cultural, mas seu legado permanece como um convite contínuo à reflexão e à resistência. Que sua memória inspire novas gerações a reconhecer a potência transformadora da arte, a valorizar o poder de uma voz que, mesmo diante das imposições ideológicas, soube eternizar sentimentos e reconstruir mundos por meio do canto.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Quanto mais recuo, mais ele avança


Às vezes, diante de um problema, sinto-me paralisado, como se houvesse um lobo desconhecido dentro da minha cabeça, uma presença silenciosa que se nutre das minhas fraquezas. Esse lobo cresce à medida que minha insegurança se fortalece, tornando-se um monstro insaciável que me convence de que não sou capaz. Evito olhar para o problema, rejeito sua existência como se ele fosse uma muralha intransponível, algo além do meu alcance. Mas essa recusa não o faz desaparecer—pelo contrário, o alimenta. O medo que sinto é a sua fonte de força, e quanto mais recuo, mais ele avança.

Essa sensação me remete a tempos passados, a momentos em que me sentia exposto, observado, vulnerável. Na escola, por exemplo, havia situações em que o simples ato de responder uma pergunta diante da turma se transformava em um campo minado de possíveis falhas. O que antes era apenas uma fantasia da incompetência, hoje retorna como uma força real, materializando-se em dificuldades que poderiam ser vencidas, mas que se tornam gigantescas dentro da minha cabeça. Carrego essa dor antiga como uma cicatriz invisível, uma marca que se reabre sempre que me coloco à prova.

Sei que não encarar um problema é ceder ao lobo, permitir que ele se fortaleça às minhas custas. Ele se alimenta do medo que construo, cresce quando me retraio e se torna mais robusto toda vez que evito um desafio. A pressão que coloco sobre mim mesmo é absurda, mas é também um mecanismo que me faz perceber que a única forma de enfraquecer esse lobo é enfrentá-lo. Olhar nos olhos do medo, reconhecê-lo e, ainda assim, dar o primeiro passo. Afinal, ignorá-lo não o faz desaparecer—pelo contrário, o transforma em algo cada vez mais voraz.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Mesmo diante dos bons vinhos


A travessia para Puerto Iguazú já começou com um teste de paciência. O calor beirava o insuportável, e passar pela aduana levou uma hora inteira, um processo lento e cansativo que só aumentava a sensação de desgaste. A espera sob o sol intenso transformava qualquer sombra em um alívio momentâneo, mas nada parecia amenizar o desconforto. E isso foi só o começo.

Chegando lá, a cidade oferecia o que se esperava: lojas repletas de vinhos a preços interessantes, o que ao menos justificou um pouco o esforço para cruzar a fronteira. A escolha foi certeira, e conseguimos levar bons rótulos, o que, de certa forma, compensava a parte burocrática da viagem. 




Íamos almoçar em Foz do Iguaçu, mas a primeira tentativa de ir embora nos frustou: a fila ultrapassava 5 quilômetros.

A fome bateu, e foi aí que veio o verdadeiro golpe: os preços dos restaurantes estavam simplesmente absurdos. Um bife de chorizo custando 120 reais, sem qualquer acompanhamento, parecia mais uma pegadinha do que uma experiência gastronômica. O absurdo do valor tirava até o prazer da refeição. A carne estava muito boa, é verdade, mas por esse valor almoçaríamos no Brasil com mais qualidade.

Se a entrada no país foi lenta, a saída foi ainda pior. Duas horas para sair de lá, debaixo do mesmo calor insuportável, sem qualquer estrutura para tornar o processo mais suportável. O cansaço, a demora e a sensação de ter pagado um preço ridículo por um prato de carne deixaram um gosto amargo na viagem. Sem falar na grosseria da funionária argentina com um amigo que estava dirigindo.

No final, o saldo foi claro: bons vinhos, mas um desgaste que fez a experiência parecer muito mais trabalho do que prazer. Tirei definitivamente Puerto Iguazú da lista de viagens. Não valeu à pena tanta espera, mesmo diante dos bons vinhos...

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Relacionamentos unilaterais




Relacionamentos unilaterais são marcados por uma dinâmica onde uma das partes se dedica intensamente, enquanto a outra parece indiferente ou pouco engajada. Um dos primeiros sinais é a sensação de estar constantemente correndo atrás. Você é quem toma a iniciativa, envia mensagens, organiza encontros e tenta manter a conexão viva. Esse esforço desequilibrado é desgastante, pois parece que, se você não insistir, o relacionamento simplesmente se dissolve. Essa corrida constante atrás de atenção ou validação se torna emocionalmente exaustiva, deixando a impressão de que você está investindo em algo que o outro não valoriza da mesma forma.

Outro sinal evidente é perceber que seus sentimentos e desejos são ignorados. Quando você expressa algo importante ou compartilha suas expectativas, a outra pessoa minimiza, desconsidera ou até muda de assunto, como se aquilo não tivesse relevância. Essa falta de acolhimento é dolorosa, pois reforça a ideia de que suas emoções não importam no relacionamento. O que deveria ser uma troca mútua se torna uma via de mão única, onde você se dedica a ouvir e apoiar, mas não recebe o mesmo em troca. Aos poucos, você começa a se questionar se está sendo valorizado ou apenas tolerado na relação.

A solidão dentro de um relacionamento é talvez o aspecto mais cruel de uma relação unilateral. Apesar de estar fisicamente acompanhado, você sente um vazio emocional, como se estivesse sozinho em seus pensamentos e preocupações. A falta de conexão real faz com que a companhia da outra pessoa se torne apenas uma presença superficial, sem profundidade ou compromisso. Essa sensação de isolamento pode corroer sua autoestima, já que você percebe que o relacionamento não está cumprindo seu papel de parceria, apoio e afeto mútuo. Estar junto de alguém deveria significar dividir a vida, mas, nesse tipo de relação, você se sente como se estivesse vivendo sozinho.

Por fim, os planos futuros, quando existem, são vagos ou inexistentes. A outra pessoa evita falar sobre compromissos de longo prazo, seja por desinteresse ou pela falta de intenção de construir algo mais sólido. Isso gera insegurança e incerteza, pois você se vê investindo em um relacionamento sem uma direção clara ou propósito comum. A ausência de planejamento conjunto é um reflexo de como a relação está desequilibrada, com um lado dedicado e esperançoso, enquanto o outro parece indiferente ou desconectado. Reconhecer esses sinais é essencial para decidir se vale a pena insistir ou se é hora de buscar um relacionamento que seja recíproco, onde os esforços, os sentimentos e os sonhos sejam compartilhados de forma justa e equilibrada.

Pensamento acordado dentro de nós

Há dias em que a cabeça não silencia. O corpo pede sono, mas a mente insiste em continuar — ideias, projetos, pensamentos atravessam a noite...