terça-feira, 6 de maio de 2025

Da Série: Contos Mínimos




Me interessei por um cara que ainda nem conheci pessoalmente. Tudo começou ali, nas mensagens trocadas sem pressa, silêncios e perguntas. Não sei exatamente quando passei a esperar as notificações com mais vontade. Sinal dos tempos se interessar por alguém que só existe em palavras escritas, em áudios curtos, em algumas fotos. Mas tem algo ali – na atenção que me dá, no riso que parece atravessar a tela. Ainda não nos vimos, mas tem uma presença dele por aqui.

sábado, 3 de maio de 2025

O tempo que a gente tem, o tempo que a gente (se) dá




Há um descompasso constante entre o tempo disponível e o tempo que decidimos investir em algo ou alguém. Nem sempre aquilo que temos em abundância se converte em dedicação. O tempo dedicado carrega uma densidade própria porque é escolha. Em meio à pressa cotidiana, os gestos mais simples, quando atentos, produzem um tipo de presença que nenhuma agenda cheia consegue simular.

Com os anos, aprendi que a permanência nem sempre coincide com o vínculo. Algumas relações duram, ponto. Outras, breves, deixam algumas marcas. O que define esse traço não é o tempo cronológico, mas o modo como se esteve — ou não — com o outro. A ausência, quando encoberta pela presença mecânica, pesa mais do que o afastamento silencioso.

Também venho me perguntando sobre o tempo que dedico a mim mesmo e ao que realmente me importa. Entre compromissos, exigências e tentativas de corresponder, há o risco de me tornar ausente (de mim). Há algo de inquietante na constatação de que é possível viver muito e, ao mesmo tempo, passar ao largo daquilo que realmente nos movimenta. Quando isso se impõe, o tempo parece escoar sem forma.

Sigo tentando afinar a escuta para perceber onde é que me implico de verdade. Nem sempre consigo. Mas sei que o tempo que se dá, quando é escolha e não obrigação, altera o modo como habitamos os dias. E talvez seja só isso o que reste ao final: a qualidade dos vínculos que sustentamos e a forma como, por meio deles, lidamos com o tempo que temos.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

A arte de apagar o outro


No mundo acadêmico (mas não apenas nele), há uma habilidade que alguns dominam com maestria: a arte de se apropriar do que não lhes pertence. É uma dança silenciosa — começa com elogios discretos, segue com sugestões "aprimoradas" e, num piscar de olhos, o projeto idealizado por um colega já circula com outra assinatura, como se tivesse brotado espontaneamente no solo fértil do "trabalho em equipe". A autoria, esse detalhe inconveniente, é varrida para debaixo do tapete com a naturalidade de quem não enxerga problema em plantar bandeira no terreno que não cultivou.

O mais curioso é como tudo se organiza em torno de uma certa lógica (ou uma lógica cínica): o projeto, dizem, "é de todos", "é da instituição", "é do espírito coletivo". E assim, sob a bandeira da coletividade forçada, se disfarça a violência simbólica de apagar o outro. O sujeito que idealizou, que pensou, que primeiro desenhou os contornos daquilo, vai sendo deslocado para as margens, como um assistente da própria criação. No palco, quem usurpou sorri e recebe aplausos, encenando a modéstia dos vencedores que, no fundo, sabem exatamente de onde tiraram seu brilho.

Mas há algo que nem sempre se percebe à primeira vista: o rastro de ressentimento que esse tipo de gesto deixa. Não é apenas a apropriação de uma ideia; é a violação da história que alguém tentou escrever com esforço e compromisso. O oportunismo travestido de competência gera feridas difíceis de cicatrizar, envenena a confiança e, mais cedo ou mais tarde, revela a falência ética daqueles que confundem inteligência com astúcia. Porque, no final, a verdadeira autoria carrega consigo uma marca que não pode ser totalmente apagada: a marca de quem ousou criar.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

"Morir también es ley de vida"

A música Sanar, de Jorge Drexler, é um delicado exercício de poesia sonora que atravessa afetos com rara sensibilidade. A melodia suave e a interpretação contida realçam a profundidade que fala das dores do amor, da perda e da necessidade de cura. A beleza da canção reside justamente na capacidade de dizer o indizível — aquilo que escapa à razão, mas que atravessa a existência: o nascer e o morrer dos sentimentos, a finitude que nos constitui. Drexler escolhe as palavras com precisão quase cirúrgica, como quem tateia com cuidado uma ferida aberta, sem jamais perder a ternura. Sanar não promete salvação, mas propõe acolhimento; não esconde a dor, mas a humaniza.

Os versos “Y nadie sabe por qué un día el amor nace / Ni sabe nadie por qué muere el amor un día” são um mergulho no mistério do amor como acontecimento — ele irrompe sem aviso e desaparece sem explicação, como força que escapa ao domínio da vontade. E quando Drexler completa com “Y nadie nace sabiendo, nace sabiendo / Que morir también es ley de vida”, ele nos convida a reconhecer que a morte — seja ela simbólica, afetiva ou literal — está inscrita na própria condição de viver. Há aí uma sabedoria melancólica que reconhece o limite do saber e da linguagem, mas que, paradoxalmente, nos aproxima ainda mais da experiência compartilhada de sermos humanos. O que está em cena é a beleza da fragilidade e da incerteza, que só um artista como Drexler é capaz de transformar em canto.





Sanar (Jorge Drexler)

Las lágrimas van al cielo y vuelven a tus ojos desde el marEl tiempo se va, se va y no vuelveTu corazón va a sanarVa a sanar, va a sanar

La tierra parece estar quieta y el sol parece girarY aunque parezca mentiraTu corazón va a sanarVa a sanar, va a sanarY va a volver a quebrarseMientras le toque pulsar
Y nadie sabe por qué un día el amor naceNi sabe nadie por qué muere el amor un díaY nadie nace sabiendo, nace sabiendoQue morir también es ley de vida
Así como cuando enfríe van a volver a pasarLos pájaros en bandadasTu corazón va a sanarVa a sanar, va a sanar
Volverás a esperanzarte y luego a desesperarY cuando menos lo esperesTu corazón va a sanarVa a sanar, va a sanarY va a volver a quebrarseMientras le toque pulsar
Y nadie sabe por qué un día el amor naceNi sabe nadie por qué muere el amor un díaNadie nace sabiendo, nace sabiendoQue morir también es ley de vida
También es ley de vidaAh-ah, ah-ah

sábado, 19 de abril de 2025

19 de Abril: Dia dos Povos Indígenas e o Silêncio que Persiste

Uma data para lembrar, resistir e denunciar o descaso histórico com os primeiros habitantes do Brasil

O Dia dos Povos Indígenas, celebrado em 19 de abril, não é apenas um marco no calendário. É um grito de resistência diante de séculos de apagamento, violência e invasão. Os povos originários deste território não são passado, tampouco estereótipos presos ao folclore. São presença viva, que resiste com força e dignidade, mesmo quando o Estado, as leis e parte da sociedade viram o rosto para suas lutas e existências.

Em todo o país, comunidades indígenas enfrentam a ocupação ilegal de seus territórios, o avanço do garimpo, os conflitos com fazendeiros e grileiros — muitas vezes armados e protegidos por estruturas de poder. A demarcação de terras caminha a passos lentos ou retrocede. O racismo estrutural os afasta do acesso digno à saúde, educação e cidadania. São corpos e saberes que seguem sendo tratados como obstáculos ao progresso, quando na verdade são guardiões de um modo de vida que respeita a terra, a coletividade e a memória.

Celebrar esta data é, antes de tudo, um ato de escuta e solidariedade. É reconhecer que não há justiça social possível sem os povos indígenas, sem o direito à terra, à cultura, à existência. O 19 de abril não deve ser reduzido a homenagens formais: é preciso dar visibilidade às denúncias, fortalecer as vozes indígenas e repensar, profundamente, a maneira como seguimos ocupando um território que não nos pertence por origem. Que essa data nos convoque ao compromisso político com a vida indígena — em sua diversidade, em sua sabedoria e em sua urgência.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Da Série: Contos Mínimos



Ela seguia o trilho do açúcar como sempre, mas naquele dia, parou. O farelo doce estava ali, intacto, à disposição — e, no entanto, faltava alguma coisa, o seu companheiro que sumira na última tempestade. Voltou sozinha para o formigueiro, arrastando não o grão, mas uma saudade miúda que cem patas não conseguiam carregar.

sábado, 12 de abril de 2025

Da Série: Contos mínimos

Tenho morrido um pouco nesses dias. É uma morte discreta. Feita de silêncios, promessas quebradas, olhares desviados e muito desânimo. Num dia me ausento de mim, no outro me escapo e na sequência desapareço. Certo de que sou despercebido.




Pensamento acordado dentro de nós

Há dias em que a cabeça não silencia. O corpo pede sono, mas a mente insiste em continuar — ideias, projetos, pensamentos atravessam a noite...