quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Quando o desleixo diz por/de você

Há uma forma de preguiça que não é física, mas simbólica. Não se trata do corpo que se recusa a mover-se, mas do sujeito que se recusa a implicar-se com aquilo que o convoca. Essa preguiça não aparece nos cochilos prolongados nem nas pausas extensas: ela se encarna no gesto apressado, no texto feito para constar, na entrega automática de algo que deveria ser próprio, mas que se transforma em mais uma formalidade a ser vencida. É a recusa de si no que se apresenta como exigência mínima de autoria.

A não implicação com aquilo que nos pertence — e que nos exige — tem consequências que ultrapassam o produto mal feito. Ela reorganiza os laços com o saber, com o tempo e com o próprio desejo. Quando o que se escreve é apenas o que é pedido, quando o que se entrega é só o suficiente para escapar da falta, o sujeito se afasta de si mesmo. Desinveste. Deixa o que é seu nas mãos de um outro imaginado que corrige, avalia, carimba. Como se o que está em jogo fosse sempre o outro e nunca ele. Como se o relatório, o texto, o percurso, não falassem também — e sobretudo — de quem os faz.

Há uma diferença entre não saber e não querer saber. A primeira se apresenta como limite, a segunda como recusa. Quando se escreve qualquer coisa porque se tem preguiça de refletir sobre o que se viveu, o gesto denuncia uma desistência do percurso, do processo, da travessia. Não se trata de erro gramatical nem de falta de técnica, mas de um certo cansaço de si, como se a própria experiência já não fosse digna de escuta, elaboração ou devolução. E isso diz muito mais sobre a relação com o próprio desejo do que sobre a relação com a tarefa.

Talvez seja mais fácil deixar para lá. Talvez pareça que ninguém vai ler com atenção, que tudo se perderá entre papéis e arquivos. Mas ainda assim, mesmo no texto mais breve e impessoal, há sempre um rastro. E é desse rastro que se faz a memória. Aquela que não precisa ser grandiosa, mas que ao menos carregue algum traço de presença. Porque no fim das contas, o que se espera não é perfeição, mas implicação. Que o sujeito se autorize a dizer — ainda que de forma provisória — o que foi o seu caminho. E que o faça sem preguiça de si.

domingo, 14 de setembro de 2025

O que importa é a qualidade dos instantes que cabem nos anos



O tempo que temos não é um estoque guardado numa prateleira, é um fio que se desenrola sem pausa, sem manual de instruções e sem devoluções. A vida não entrega extrato bancário com saldo de anos restantes, só a conta corrente do tempo de agora. É nesse espaço curto entre o ontem e o amanhã que nunca se garante que a gente precisa decidir o que vale viver.

Há quem viva acumulando promessas e adiando alegrias, como quem guarda vinho caro para um brinde. O tempo é mais malandro que isso. Ele não pede licença, não avisa quando muda de marcha, apenas segue. E nós, ao ficamos esperando demais, acabamos sendo passageiros distraídos, reclamando do percurso sem notar a paisagem.

O curioso é que a vida insiste, mesmo nos dias mais banais. Há uma pulsão alegre que se manifesta em coisas pequenas: a risada torta, o café bem tirado, a música que gruda no ouvido e muda o humor. Talvez viver seja aprender a fazer festa com essas miudezas, porque o grande espetáculo pode até não acontecer. A força está em continuar, em seguir inventando motivos para não se entregar ao enfado.

E se sobra a pergunta sobre quanto tempo resta, talvez a resposta seja outra: o que você quer colocar dentro desse tempo que sobra? Porque não é a quantidade de anos que importa, é a qualidade dos instantes que cabem neles. O relógio corre, e a única tática possível é rir de vez em quando da pressa dele, abrir espaço para o inesperado e, quem sabe, viver como se cada dia fosse uma pequena edição limitada.

sábado, 13 de setembro de 2025

Nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo...




Há um vão que nenhuma conquista preenche, nenhuma companhia dissolve, nenhuma viagem substitui. Nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo (versos cantados por Djavan em Seduzir) — porque esse fundo não é feito de ausência concreta, mas de uma falta constitutiva, aquela que nos funda como sujeitos desejantes. É da ordem do impossível preenchimento. E quanto mais bebemos do mundo tentando calar esse vazio, mais ele nos lembra que não se trata de sede, mas de estrutura.

A psicanálise já nos sussurra isso desde Freud: somos constituídos por uma perda inaugural, algo que não tivemos e que, paradoxalmente, nos move. Lacan nomeou isso com precisão: o sujeito é efeito da linguagem e nasce pela entrada no simbólico, isto é, pela castração simbólica, pela perda, pela renúncia ao gozo pleno. O que nos falta não é o mar — é a coisa que nunca tivemos, mas que seguimos rodeando com palavras, com gestos, com amores. É o desejo que brota justamente porque nunca será saciado.

Aceitar essa incompletude, no entanto, não é se entregar à melancolia. É, talvez, o início da liberdade. Porque quando deixamos de procurar o que nos completaria, abrimos espaço para criar com o que temos: restos, traços, equívocos e repetições. O fundo que carregamos não precisa ser preenchido — ele pode ser habitado. E nesse habitar, podemos escutar o que nos falta não como tragédia, mas como ritmo. Um ritmo que nos lembra, a cada onda que passa, que somos feitos de falta, sim — mas também de linguagem, de gesto e de invenção.

sábado, 6 de setembro de 2025

Saúde e boas leituras!

Vinho & Literatura soa elegante, quase como se cada gole fosse acompanhado de uma citação francesa sussurrada ao ouvido. Mas, convenhamos, a grande área de Linguística e Letras não vive só de vinhos. Se quisermos brincar, dá para imaginar uma verdadeira carta de bebidas acadêmicas. Por exemplo, a cachaça combinaria perfeitamente com a Linguística Histórica: forte, rústica e cheia de memória — cada gole trazendo à tona as raízes da língua, lá no latim já quase esquecido, mas ainda presente na garganta.

A caipirinha, por sua vez, poderia ser o par ideal da Sociolinguística. Do mesmo jeito que a bebida mistura limão, açúcar, gelo e cachaça, o estudo sociolinguístico junta classes sociais, regiões e escolaridades. Cada gole muda conforme o equilíbrio dos ingredientes, assim como cada fala depende do contexto, da situação e da relação entre interlocutores. Já a cerveja, tão democrática, cairia como uma luva na Gramática Descritiva: acessível, variada e plural, porque sempre tem um estilo para cada gosto, seja IPA, pilsen ou stout — assim como há um jeito legítimo de falar em cada região ou grupo.

Agora, se quisermos ousar, o corote seria perfeito para a Análise do Discurso. Barato, marginal, muitas vezes visto com desconfiança, mas que nos mostra uma potência de sentidos no lugar onde circula. Afinal, o discurso também vem marcado por ideologias, por posições e por um certo efeito de escândalo quando ocupa espaços não autorizados. Já o suco se encaixaria na Linguística Aplicada: nutritivo, variado, mas muitas vezes subestimado. Quem nunca ouviu um “é só suco” — assim como o “é só ensino de língua” — sem perceber a complexidade que se esconde ali?

E ainda poderíamos pensar no café, companheiro inseparável de quem escreve artigos até altas horas, perfeito para a Crítica Literária: denso, amargo, mas que mantém o sujeito acordado para ir fundo na análise. O quentão, por sua vez, seria a Literatura Popular: quente, coletivo, cantado em roda. E a água? Essa seria a Gramática Normativa: necessária, insípida, transparente — e obrigatória. O bom mesmo é que, entre um gole e outro, descobrimos que beber e estudar têm algo em comum: ambos produzem efeitos de sentido, e a ressaca, às vezes, é inevitável. Saúde e boas leituras!

Primeiro eu, se tiver mais tempo, eu também...porque pra mim é só o que importa

Às vezes, a vida nos apresenta aquele tipo de sujeito que caminha com holofote portátil. Tudo precisa apontar para o seu EU , como se o rest...