quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A integridade não se negocia



Há uma linha tênue entre o trabalho e aquilo que se vive fora dele, mas existe um princípio que sustenta qualquer atividade profissional: quem assume uma função responde por ela. Um pedido feito no horário de expediente convoca uma responsabilidade, seja responder, encaminhar, resolver ou, no mínimo, dar retorno. Silenciar, fingir ausência ou tratar demandas como algo voluntário enfraquece o sentido do próprio cargo e coloca em risco a confiança que sustenta o ambiente  de trabalho.

O vínculo pessoal pode até florescer entre colegas, mas essa é uma consequência, não um propósito. A convivência diária cria aproximações, afinidades e até cumplicidades, mas nada disso ocupa o lugar da tarefa que nos foi atribuída. A cobrança existe porque há uma posição ocupada. Ninguém está ali apenas porque é simpático, agradável ou querido. A presença se justifica pela capacidade de resposta àquilo que foi assumido institucionalmente.

Em ambientes profissionais, o gesto de tratar a amizade como porta de entrada para privilégios, tolerâncias ou desculpas desestabiliza as relações. Quando a cordialidade passa a valer mais do que a entrega, cria-se uma confusão perigosa entre afeto e responsabilidade. É reconfortante trabalhar com pessoas que admiramos, mas a prioridade recai sobre o trabalho realizado. Se houver afinidade, ótimo. Caso não exista, ainda assim a expectativa permanece: cumprir aquilo que cabe a cada um.

Um capítulo à parte é ocupado por aqueles sujeitos que se dedicam a bajulações. Esse tipo de presença se molda ao desejo do chefe, esvazia o pensamento e troca a reflexão por elogios permanentes. O objetivo não é contribuir, mas se manter protegido, garantindo benefícios financeiros e alguma sensação de importância emprestada. Esses personagens lembram constantemente que, no mundo profissional, há quem prefira o conforto submisso ao risco de pensar. Quem sustenta o próprio lugar, porém, sabe que a integridade nunca se negocia.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Ele atravessou a vida como quem caminha sem abrigo



Gerson de Melo Machado atravessou a vida como quem caminha sem abrigo. Sua história, que poderia ter sido apenas a de um rapaz de 19 anos tentando encontrar algum lugar no mundo, se desdobra como um retrato de desamparo. Recebido pela rede pública ainda criança, circulando entre atendimentos, instituições e fugas, ele parecia sempre escapar das mãos que tentavam segurá-lo. Aos olhos de quem o acompanhou desde a infância, havia ali um menino que não teve chance de aprender a existir com alguma proteção mínima.

O domingo em que perdeu a vida no Parque Arruda Câmara expôs o ponto extremo dessa trajetória. O ato de escalar muros e ingressar no recinto da leoa, mais do que uma aventura inconsequente, parece ecoar uma luta silenciosa com limites que nunca lhe foram ofertados de modo consistente. A cena registrada por visitantes transformou-se rapidamente em notícia, mas antes disso havia um jovem atravessado por uma sucessão de ausências, diagnósticos, tentativas de cuidado e interrupções bruscas.

A morte de Gerson, provocada pela reação instintiva do animal, tornou-se um acontecimento que não se encerra no laudo pericial. O parque fechado, a prefeitura instaurando apurações e a leoa em estado de estresse compõem o cenário imediato, mas o que permanece é outra dimensão: a de um percurso marcado por fragilidades, abandonos e escolhas que nunca foram totalmente dele. É impossível olhar para a imagem daquele momento sem pensar nos caminhos que o empurraram até ali.

O que se inscreve agora em nossa memória é mais do que o ataque no zoológico. A história de Gerson convoca perguntas sobre o que se faz, enquanto sociedade, com pessoas que nascem e crescem fora de qualquer horizonte de cuidado contínuo. Sua morte deixa uma tristeza áspera, dessas que não se desfazem com o tempo, porque aponta para distâncias que se ampliam entre quem tem amparo e quem aprende a sobreviver sozinho. A vida desse rapaz, interrompida de maneira brutal, nos coloca diante de uma ausência que não pode ser naturalizada.

domingo, 30 de novembro de 2025

Da Série: Contos mínimos



O domingo parecia um lençol estendido no varal, cheio de dobras onde o tempo se escondia. Acordei tarde, tomei café encarando o lado de fora (de mim), já que olhar para dentro me cansava demais. O dia seguia seu curso e, quando percebi, ele já se despedia, levando consigo a impressão de que algo importante poderia ter acontecido, mas não aconteceu. Ainda assim, guardei um certo alívio na ideia de haver dias que não cobram nada além de estar vivo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Sem saber exatamente o quê








Há períodos em que o ritmo interno desacerta e tudo parece mais pesado do que deveria. Há dias em que levantar, responder mensagens e cumprir prazos soa como um esforço desproporcional. Neste momento, estou dentro desse redemoinho silencioso, tentando compreender o que acontece comigo enquanto a vida segue lá fora. Não se trata de grandes tragédias, apenas um desgaste acumulado que insiste em se anunciar.

O curioso é que investi cada centímetro da minha energia no trabalho, acreditando que a dedicação intensa pudesse funcionar como um escudo. Permaneci ocupado, sempre com algo a fazer, sempre com uma tarefa urgente. Foi um modo de evitar olhares mais profundos sobre aquilo que, no fundo, eu já sabia. A agenda cheia serviu de trilha para fugir de mim mesmo.

A parte mais incômoda dessa história é reconhecer a própria participação no enredo. Não existe vilão externo para apontar. Os obstáculos que enfrento nasceram de decisões que eu mesmo tomei, de expectativas que construí, de escolhas que fiz tentando dar conta de tudo. Esse reconhecimento pesa, aperta o peito e provoca uma mistura de angústia e ansiedade difícil de administrar.

Ainda assim, esse movimento me coloca diante de constatações que já não consigo contornar. Percebo que há limites que ignorei e sinais que preferi não enxergar, como se fosse possível adiar indefinidamente o encontro comigo mesmo. Não é uma epifania, apenas a evidência de um cansaço que cobra presença e pede nome. Talvez não seja o momento de transformar isso em algo produtivo ou inspirador — é simplesmente o que está posto. Sigo atravessando essa fase sem clareza sobre o que virá depois, convivendo com a sensação incômoda de que algo precisa mudar, mesmo sem saber exatamente o quê.

domingo, 23 de novembro de 2025

No excesso, algo pede passagem



Os dias se enfileiram e eu me vejo atravessando cada um com uma espécie de pressa silenciosa. Saio demais, como se a rua pudesse oferecer um intervalo para aquilo que não nomeio. Como demais, como se o sabor ocupasse um espaço que não sei preencher. Trabalho até tarde, ultrapasso limites, empilho tarefas em uma tentativa quase automática de convencer a mim mesmo de que seguir em movimento impede qualquer pergunta mais funda de surgir.

Percebo também o quanto tenho falado. Falo sobre tudo, sobre assuntos leves, sobre bobagens, sobre o que não importa. Falo para preencher o ar, para não deixar brechas, como se o silêncio pudesse me encurralar. E, ao mesmo tempo, essa falação toda guarda algo de curioso: um gesto que tenta lidar com o incômodo. Há uma espécie de ritmo acelerado que vou sustentando, como quem tropeça de propósito para não precisar olhar para o que faz tropeçar.

Quando olho com mais cuidado, vejo que o excesso aparece como uma sobreposição: um gesto que procura cobrir fissuras que não sei de onde vêm. Há sempre algo que escapa. Uma sensação de intervalo, de descompasso, que tento contornar esticando os limites. Como se a rua, a comida, o trabalho e as palavras formassem uma superfície lisa capaz de esconder a irregularidade que insiste em aparecer.

Sei que há faltas que rondam tudo isso. Desconfio quais sejam elas. Elas acenam, mesmo quando tento ignorá-las. E reconhecer essas presenças não resolve nada de imediato, embora abra espaço para respirar de outro modo. Entre excessos e silêncios possíveis, sigo tentando compreender o que, afinal, pede passagem.

sábado, 15 de novembro de 2025

O desejo de saber: eis o cartel




Lacan imaginou o cartel como uma maneira diferente de estudar e pensar junto. Nada de salas cheias, palestras longas ou hierarquias entre quem sabe e quem aprende. No lugar disso, pequenos grupos — quatro ou cinco pessoas — que se reúnem em torno de um tema comum, algo que as instiga. Cada participante escolhe o que quer investigar dentro desse tema e o faz a partir da própria experiência, das suas leituras, das suas perguntas. O cartel nasce dessa aposta: que o saber não vem de cima, mas do trabalho compartilhado entre sujeitos que pensam.

O curioso é que, embora o cartel tenha essa aparência simples, ele carrega um gesto profundamente ético. Lacan propõe o cartel como um antídoto contra o mestre que sabe tudo. Ninguém ocupa o lugar de quem detém a verdade. Há apenas um coordenador — chamado de mais-um — cuja função não é ensinar, mas manter o desejo de trabalho em movimento. É ele quem ajuda o grupo a não se perder, a não se acomodar, a sustentar o pensamento quando o entusiasmo diminui ou quando o silêncio pesa demais.

Nesse sentido, o cartel é uma experiência de deslocamento. Cada um trabalha a partir do que não sabe, do ponto que o inquieta. Não se trata de chegar a uma conclusão definitiva, mas de produzir algo — um texto, uma reflexão, uma pergunta — que marque a passagem pelo tema. O saber que emerge ali não é propriedade de ninguém, mas efeito do encontro entre sujeitos que se interrogam juntos.

Talvez seja isso o mais interessante: o cartel não é um grupo de estudo no sentido tradicional, é quase uma forma de laço. Um lugar pequeno onde o pensamento pode respirar, tropeçar, retomar fôlego e se reinventar. Nele, o que conta não é a resposta final, mas o caminho de cada um — esse movimento que, ao final, nos ensina mais sobre o desejo de saber do que sobre o saber em si.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

O buraco sem fundo chamado WhatsApp




Há dias em que me pego pensando se o WhatsApp é mesmo um aplicativo de mensagens ou um portal interdimensional que suga o tempo, a paciência e, às vezes, a sanidade. Basta um segundo de distração — um café, um olhar pela janela, um suspiro — e lá vem ele vibrando de novo, com aquele plim insistente que parece dizer: “Não se iluda, ainda há algo a resolver!”. São mensagens que pedem, cobram, informam, lembram, perguntam, reenviam e atualizam. É como se o universo inteiro tivesse decidido se comunicar comigo ao mesmo tempo, e todos achassem que seu assunto é urgente.

Há o aluno que manda o trabalho, o mesmo que, cinco minutos depois, reenvia “a versão atualizada” — como se o tempo de leitura fosse elástico. Há quem peça confirmação de leitura, quem se desculpe por não vir à aula e quem diga que mandou mensagem e não recebeu resposta (como se o silêncio fosse uma ofensa pessoal). E eu ali, tentando organizar o pensamento entre uma mensagem e outra, enquanto o WhatsApp parece rir de mim: “você achou que ia descansar? Que graça!”.

Vivemos uma era do pra ontem, do “vi que você visualizou”, do “responde quando puder (mas eu sei que você pode agora)”. É o culto da urgência disfarçado de comunicação. A conversa já não é mais diálogo, é maratona. A cada resposta, nascem outras dez perguntas. A cada esclarecimento, surge um novo pedido de explicação. O aplicativo virou o espelho da nossa ansiedade coletiva: o medo de esperar, de perder, de ficar de fora. É o imediatismo em forma de balãozinho verde.

E no fim, entre um “bom dia, prof!” e um “segue o arquivo revisado”, percebo que o WhatsApp é um buraco sem fundo — e nós somos os equilibristas tentando manter um pouco de sossego na beira do abismo digital. Ainda não inventaram um botão de “modo contemplativo”, mas eu sigo sonhando com ele. Até lá, sigo respondendo, rindo e suspirando, enquanto o plim ecoa, incansável, no fundo do meu bolso e, confesso, também na minha cabeça.

A integridade não se negocia

Há uma linha tênue entre o trabalho e aquilo que se vive fora dele , mas existe um princípio que sustenta qualquer atividade profissional: q...