quarta-feira, 12 de novembro de 2025

O buraco sem fundo chamado WhatsApp




Há dias em que me pego pensando se o WhatsApp é mesmo um aplicativo de mensagens ou um portal interdimensional que suga o tempo, a paciência e, às vezes, a sanidade. Basta um segundo de distração — um café, um olhar pela janela, um suspiro — e lá vem ele vibrando de novo, com aquele plim insistente que parece dizer: “Não se iluda, ainda há algo a resolver!”. São mensagens que pedem, cobram, informam, lembram, perguntam, reenviam e atualizam. É como se o universo inteiro tivesse decidido se comunicar comigo ao mesmo tempo, e todos achassem que seu assunto é urgente.

Há o aluno que manda o trabalho, o mesmo que, cinco minutos depois, reenvia “a versão atualizada” — como se o tempo de leitura fosse elástico. Há quem peça confirmação de leitura, quem se desculpe por não vir à aula e quem diga que mandou mensagem e não recebeu resposta (como se o silêncio fosse uma ofensa pessoal). E eu ali, tentando organizar o pensamento entre uma mensagem e outra, enquanto o WhatsApp parece rir de mim: “você achou que ia descansar? Que graça!”.

Vivemos uma era do pra ontem, do “vi que você visualizou”, do “responde quando puder (mas eu sei que você pode agora)”. É o culto da urgência disfarçado de comunicação. A conversa já não é mais diálogo, é maratona. A cada resposta, nascem outras dez perguntas. A cada esclarecimento, surge um novo pedido de explicação. O aplicativo virou o espelho da nossa ansiedade coletiva: o medo de esperar, de perder, de ficar de fora. É o imediatismo em forma de balãozinho verde.

E no fim, entre um “bom dia, prof!” e um “segue o arquivo revisado”, percebo que o WhatsApp é um buraco sem fundo — e nós somos os equilibristas tentando manter um pouco de sossego na beira do abismo digital. Ainda não inventaram um botão de “modo contemplativo”, mas eu sigo sonhando com ele. Até lá, sigo respondendo, rindo e suspirando, enquanto o plim ecoa, incansável, no fundo do meu bolso e, confesso, também na minha cabeça.

domingo, 2 de novembro de 2025

Trabalhar até cansar do cansaço: o drama de quem não sabe quando é fim de semana


Há semanas que não têm fim — e não falo das estações do tempo, falo do trabalho. A sensação é a de estar preso num looping infinito de tarefas, e-mails, WhatsApp, prazos e “só mais uma coisinha antes de dormir”. De segunda a domingo, o relógio marca horas que não cabem mais no corpo. Trabalhar muito virou o novo normal, e o descanso, ah, o descanso... Eu tento negociar com o tempo, mas ele é um chefe implacável. 

No sábado, em vez de curtir o friozinho e a chuva, chegou mais um artigo para avaliar antes de eu conseguir finalizar o meu. No domingo, em vez de paz, me lembro dos comprovantes das passagens, dos certificados dos eventos e da prestação de contas para a pós-graduação. O café da manhã virou extensão da agenda (a xícara de café está sob a tela do PC) e a mesa do almoço, uma espécie de escritório improvisado (como e leio ao mesmo tempo). 

Enquanto os amigos postam fotos de churrascos, eu reviso os artigos (meus e dos orientandos) e respondo algumas mensagens. Há um momento em que o cérebro começa a pedir férias de si mesmo, mas o corpo, obediente, insiste em continuar.

E o pior: tudo isso parece sempre urgente. Cada tarefa vem disfarçada de catástrofe iminente — e não ouso dizer “faço depois” porque não vai dar tempo. O tempo livre virou um luxo, e a culpa, uma constante. É um tipo de exaustão que nem o sono resolve, porque mesmo dormindo o pensamento continua em modo “pendência”.

Mas aí chega a segunda-feira, e o ciclo recomeça, com a mesma convicção de quem acredita que agora vai dar tempo. Eu rio, mas é de nervoso — quando o corpo já desistiu de argumentar. Trabalhar demais é o esporte do professor. E o troféu? Uma pilha de tarefas cumpridas, 3 linhas novas no Lattes e um coração pedindo pausa.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Primeiro eu, se tiver mais tempo, eu também...porque pra mim é só o que importa



Às vezes, a vida nos apresenta aquele tipo de sujeito que caminha com holofote portátil. Tudo precisa apontar para o seu EU, como se o restante do mundo fosse apenas cenário de apoio. Ele narra o próprio respirar, converte qualquer conversa em desfile e coleciona plateias improvisadas. O curioso é que essa centralidade não ilumina: ofusca. Há brilho, há ruído, falta mundo.

Em volta dele, as experiências alheias viram gatilho para discursos autorreferidos. Você conta algo e recebe de volta um espelho: o assunto retorna para o centro, onde ele se mantém entronizado. A escuta vira performance, a presença do outro vira pano de fundo. O resultado é um cotidiano empobrecido, repetitivo, circulando sempre na mesma órbita, com o EU ocupando cada centímetro do espaço simbólico.

Há quem confunda intensidade com importância. O eu inflado fala alto, gesticula, ocupa, mas não se compromete com o encontro. Encontro supõe deslocamento, curiosidade, abertura. Para quem se coloca como medida de todas as coisas, deslocar-se parece ameaça. Assim se sustenta uma rotina de monólogos: ele é visto, ele é ouvido; ele não vê, ele não ouve.

Cuidar dos vínculos pede um gesto simples e raro: ceder lugar. Dar passagem para que o outro exista. Isso não apaga ninguém; ao contrário, amplia. Quando o “eu” aprende a dividir a cena com o “nós”, a conversa respira, os afetos se espraiam, a vida ganha profundidade. Talvez o primeiro passo seja desinflar a necessidade de centralidade e experimentar uma presença menos ruidosa, mais atenta, mais ética no cotidiano.

domingo, 5 de outubro de 2025

Um modo de estar


Voltar pra casa depois de uma viagem é como atravessar uma fronteira invisível entre o que ficou e o que volta. O corpo chega carregando cansaço, cheiros, restos de vozes, enquanto a alma vem mais lenta, distraída, ainda presa em paisagens, situações, conversas. Há um tempo em suspenso entre o fim da viagem e o início do retorno, um intervalo em que a casa parece observar quem chega.

A cada passo, reconheço o território conhecido. O som da porta, o cheiro onipresente do café, a luz que atravessa a cortina com a mesma delicadeza de sempre. Mas há uma leve estranheza — como se eu fosse visitante na própria vida. Estar longe faz com que o lar se revele em detalhes que antes passaram despercebidos: o tapete desalinhado, o livro esquecido, o copo fora do lugar. Tudo me observa com uma espécie de silêncio.

É nesse silêncio que a solidão aparece, serena. Não há ninguém me esperando, e percebo que talvez nunca tenha havido. Ainda assim, há algo de bonito nisso: voltar para si mesmo, sem plateia, sem expectativa. A casa, vazia, não cobra. Ela apenas acolhe, como um abrigo antigo onde cabem os restos de cada viagem e o sossego de cada regresso. A ausência de alguém me esperando já não dói; é constatação de um modo de estar.

E então olho em volta e respiro. Voltar pra casa é um reencontro com o próprio tempo. Abrir as malas, guardar lembranças e, aos poucos, retomar o ritmo de quem habita o próprio corpo. Nenhum abraço me espera, há a presença tranquila dessas coisas que aqui estão. E, no fundo, é disso que se trata: voltar, desfazer o caminho, e descobrir — mais uma vez — que estar só também é uma forma de chegar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Quando o desleixo diz por/de você

Há uma forma de preguiça que não é física, mas simbólica. Não se trata do corpo que se recusa a mover-se, mas do sujeito que se recusa a implicar-se com aquilo que o convoca. Essa preguiça não aparece nos cochilos prolongados nem nas pausas extensas: ela se encarna no gesto apressado, no texto feito para constar, na entrega automática de algo que deveria ser próprio, mas que se transforma em mais uma formalidade a ser vencida. É a recusa de si no que se apresenta como exigência mínima de autoria.

A não implicação com aquilo que nos pertence — e que nos exige — tem consequências que ultrapassam o produto mal feito. Ela reorganiza os laços com o saber, com o tempo e com o próprio desejo. Quando o que se escreve é apenas o que é pedido, quando o que se entrega é só o suficiente para escapar da falta, o sujeito se afasta de si mesmo. Desinveste. Deixa o que é seu nas mãos de um outro imaginado que corrige, avalia, carimba. Como se o que está em jogo fosse sempre o outro e nunca ele. Como se o relatório, o texto, o percurso, não falassem também — e sobretudo — de quem os faz.

Há uma diferença entre não saber e não querer saber. A primeira se apresenta como limite, a segunda como recusa. Quando se escreve qualquer coisa porque se tem preguiça de refletir sobre o que se viveu, o gesto denuncia uma desistência do percurso, do processo, da travessia. Não se trata de erro gramatical nem de falta de técnica, mas de um certo cansaço de si, como se a própria experiência já não fosse digna de escuta, elaboração ou devolução. E isso diz muito mais sobre a relação com o próprio desejo do que sobre a relação com a tarefa.

Talvez seja mais fácil deixar para lá. Talvez pareça que ninguém vai ler com atenção, que tudo se perderá entre papéis e arquivos. Mas ainda assim, mesmo no texto mais breve e impessoal, há sempre um rastro. E é desse rastro que se faz a memória. Aquela que não precisa ser grandiosa, mas que ao menos carregue algum traço de presença. Porque no fim das contas, o que se espera não é perfeição, mas implicação. Que o sujeito se autorize a dizer — ainda que de forma provisória — o que foi o seu caminho. E que o faça sem preguiça de si.

domingo, 14 de setembro de 2025

O que importa é a qualidade dos instantes que cabem nos anos



O tempo que temos não é um estoque guardado numa prateleira, é um fio que se desenrola sem pausa, sem manual de instruções e sem devoluções. A vida não entrega extrato bancário com saldo de anos restantes, só a conta corrente do tempo de agora. É nesse espaço curto entre o ontem e o amanhã que nunca se garante que a gente precisa decidir o que vale viver.

Há quem viva acumulando promessas e adiando alegrias, como quem guarda vinho caro para um brinde. O tempo é mais malandro que isso. Ele não pede licença, não avisa quando muda de marcha, apenas segue. E nós, ao ficamos esperando demais, acabamos sendo passageiros distraídos, reclamando do percurso sem notar a paisagem.

O curioso é que a vida insiste, mesmo nos dias mais banais. Há uma pulsão alegre que se manifesta em coisas pequenas: a risada torta, o café bem tirado, a música que gruda no ouvido e muda o humor. Talvez viver seja aprender a fazer festa com essas miudezas, porque o grande espetáculo pode até não acontecer. A força está em continuar, em seguir inventando motivos para não se entregar ao enfado.

E se sobra a pergunta sobre quanto tempo resta, talvez a resposta seja outra: o que você quer colocar dentro desse tempo que sobra? Porque não é a quantidade de anos que importa, é a qualidade dos instantes que cabem neles. O relógio corre, e a única tática possível é rir de vez em quando da pressa dele, abrir espaço para o inesperado e, quem sabe, viver como se cada dia fosse uma pequena edição limitada.

sábado, 13 de setembro de 2025

Nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo...




Há um vão que nenhuma conquista preenche, nenhuma companhia dissolve, nenhuma viagem substitui. Nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo (versos cantados por Djavan em Seduzir) — porque esse fundo não é feito de ausência concreta, mas de uma falta constitutiva, aquela que nos funda como sujeitos desejantes. É da ordem do impossível preenchimento. E quanto mais bebemos do mundo tentando calar esse vazio, mais ele nos lembra que não se trata de sede, mas de estrutura.

A psicanálise já nos sussurra isso desde Freud: somos constituídos por uma perda inaugural, algo que não tivemos e que, paradoxalmente, nos move. Lacan nomeou isso com precisão: o sujeito é efeito da linguagem e nasce pela entrada no simbólico, isto é, pela castração simbólica, pela perda, pela renúncia ao gozo pleno. O que nos falta não é o mar — é a coisa que nunca tivemos, mas que seguimos rodeando com palavras, com gestos, com amores. É o desejo que brota justamente porque nunca será saciado.

Aceitar essa incompletude, no entanto, não é se entregar à melancolia. É, talvez, o início da liberdade. Porque quando deixamos de procurar o que nos completaria, abrimos espaço para criar com o que temos: restos, traços, equívocos e repetições. O fundo que carregamos não precisa ser preenchido — ele pode ser habitado. E nesse habitar, podemos escutar o que nos falta não como tragédia, mas como ritmo. Um ritmo que nos lembra, a cada onda que passa, que somos feitos de falta, sim — mas também de linguagem, de gesto e de invenção.

O buraco sem fundo chamado WhatsApp

Há dias em que me pego pensando se o WhatsApp é mesmo um aplicativo de mensagens ou um portal interdimensional que suga o tempo, a paciência...