domingo, 14 de setembro de 2025

O que importa é a qualidade dos instantes que cabem nos anos



O tempo que temos não é um estoque guardado numa prateleira, é um fio que se desenrola sem pausa, sem manual de instruções e sem devoluções. A vida não entrega extrato bancário com saldo de anos restantes, só a conta corrente do tempo de agora. É nesse espaço curto entre o ontem e o amanhã que nunca se garante que a gente precisa decidir o que vale viver.

Há quem viva acumulando promessas e adiando alegrias, como quem guarda vinho caro para um brinde. O tempo é mais malandro que isso. Ele não pede licença, não avisa quando muda de marcha, apenas segue. E nós, ao ficamos esperando demais, acabamos sendo passageiros distraídos, reclamando do percurso sem notar a paisagem.

O curioso é que a vida insiste, mesmo nos dias mais banais. Há uma pulsão alegre que se manifesta em coisas pequenas: a risada torta, o café bem tirado, a música que gruda no ouvido e muda o humor. Talvez viver seja aprender a fazer festa com essas miudezas, porque o grande espetáculo pode até não acontecer. A força está em continuar, em seguir inventando motivos para não se entregar ao enfado.

E se sobra a pergunta sobre quanto tempo resta, talvez a resposta seja outra: o que você quer colocar dentro desse tempo que sobra? Porque não é a quantidade de anos que importa, é a qualidade dos instantes que cabem neles. O relógio corre, e a única tática possível é rir de vez em quando da pressa dele, abrir espaço para o inesperado e, quem sabe, viver como se cada dia fosse uma pequena edição limitada.

sábado, 13 de setembro de 2025

Nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo...




Há um vão que nenhuma conquista preenche, nenhuma companhia dissolve, nenhuma viagem substitui. Nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo (versos cantados por Djavan em Seduzir) — porque esse fundo não é feito de ausência concreta, mas de uma falta constitutiva, aquela que nos funda como sujeitos desejantes. É da ordem do impossível preenchimento. E quanto mais bebemos do mundo tentando calar esse vazio, mais ele nos lembra que não se trata de sede, mas de estrutura.

A psicanálise já nos sussurra isso desde Freud: somos constituídos por uma perda inaugural, algo que não tivemos e que, paradoxalmente, nos move. Lacan nomeou isso com precisão: o sujeito é efeito da linguagem e nasce pela entrada no simbólico, isto é, pela castração simbólica, pela perda, pela renúncia ao gozo pleno. O que nos falta não é o mar — é a coisa que nunca tivemos, mas que seguimos rodeando com palavras, com gestos, com amores. É o desejo que brota justamente porque nunca será saciado.

Aceitar essa incompletude, no entanto, não é se entregar à melancolia. É, talvez, o início da liberdade. Porque quando deixamos de procurar o que nos completaria, abrimos espaço para criar com o que temos: restos, traços, equívocos e repetições. O fundo que carregamos não precisa ser preenchido — ele pode ser habitado. E nesse habitar, podemos escutar o que nos falta não como tragédia, mas como ritmo. Um ritmo que nos lembra, a cada onda que passa, que somos feitos de falta, sim — mas também de linguagem, de gesto e de invenção.

sábado, 6 de setembro de 2025

Saúde e boas leituras!

Vinho & Literatura soa elegante, quase como se cada gole fosse acompanhado de uma citação francesa sussurrada ao ouvido. Mas, convenhamos, a grande área de Linguística e Letras não vive só de vinhos. Se quisermos brincar, dá para imaginar uma verdadeira carta de bebidas acadêmicas. Por exemplo, a cachaça combinaria perfeitamente com a Linguística Histórica: forte, rústica e cheia de memória — cada gole trazendo à tona as raízes da língua, lá no latim já quase esquecido, mas ainda presente na garganta.

A caipirinha, por sua vez, poderia ser o par ideal da Sociolinguística. Do mesmo jeito que a bebida mistura limão, açúcar, gelo e cachaça, o estudo sociolinguístico junta classes sociais, regiões e escolaridades. Cada gole muda conforme o equilíbrio dos ingredientes, assim como cada fala depende do contexto, da situação e da relação entre interlocutores. Já a cerveja, tão democrática, cairia como uma luva na Gramática Descritiva: acessível, variada e plural, porque sempre tem um estilo para cada gosto, seja IPA, pilsen ou stout — assim como há um jeito legítimo de falar em cada região ou grupo.

Agora, se quisermos ousar, o corote seria perfeito para a Análise do Discurso. Barato, marginal, muitas vezes visto com desconfiança, mas que nos mostra uma potência de sentidos no lugar onde circula. Afinal, o discurso também vem marcado por ideologias, por posições e por um certo efeito de escândalo quando ocupa espaços não autorizados. Já o suco se encaixaria na Linguística Aplicada: nutritivo, variado, mas muitas vezes subestimado. Quem nunca ouviu um “é só suco” — assim como o “é só ensino de língua” — sem perceber a complexidade que se esconde ali?

E ainda poderíamos pensar no café, companheiro inseparável de quem escreve artigos até altas horas, perfeito para a Crítica Literária: denso, amargo, mas que mantém o sujeito acordado para ir fundo na análise. O quentão, por sua vez, seria a Literatura Popular: quente, coletivo, cantado em roda. E a água? Essa seria a Gramática Normativa: necessária, insípida, transparente — e obrigatória. O bom mesmo é que, entre um gole e outro, descobrimos que beber e estudar têm algo em comum: ambos produzem efeitos de sentido, e a ressaca, às vezes, é inevitável. Saúde e boas leituras!

domingo, 31 de agosto de 2025

Da Série: Conto Mínimo

Na penumbra do quarto empoeirado, havia uma cômoda antiga que guardava mais do que roupas esquecidas: em sua gaveta do meio, repousava um bicho-preguiça, acomodado como se sempre tivesse pertencido àquele espaço estreito. Entre camisetas enroladas, ele encontrava o ninho perfeito como quem desafia o relógio. As meias viravam travesseiros, os lenços, mantas improvisadas, e o cheiro de madeira antiga misturava-se ao calor de sua presença. Nada ali se movia rápido; o ranger da gaveta era a única interrupção da quietude. Havia, naquele esconderijo improvável, uma lição escondida sobre o repouso e a calma.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O macaco vermelho e a jaula de Paul Preciado

Franz Kafka escreveu, em 1917, o conto Um relatório para a Academia. Nele, um macaco chamado Pedro Vermelho narra como, após ser capturado e trancado em uma jaula, percebeu que sua única saída era aprender a linguagem e os costumes humanos. Não se tratava de libertação, mas de sobrevivência: ou permanecia na jaula da sua animalidade, condenado à morte, ou aceitava a outra jaula — a subjetividade humana, repleta de regras, domesticação e artifícios.

Paul B. Preciado retoma essa metáfora e a desloca para pensar sua própria condição de homem trans e para questionar os limites da subjetividade que o mundo normativo impõe. Assim como Pedro Vermelho, Preciado não romantiza a passagem de uma prisão para outra. Reconhece que, ao adentrar a “normalidade” exigida — seja pela medicina, pela lei ou pela psicanálise —, não se conquista liberdade, apenas se troca de gaiola.

O que Preciado denuncia é a violência invisível dessa troca. O macaco de Kafka não escolhe tornar-se humano; faz isso porque é a única forma de escapar da morte. O sujeito trans, por sua vez, é frequentemente empurrado para modelos identitários pré-fabricados: ou se adequa às normas médicas e jurídicas para existir socialmente, ou permanece preso na jaula da marginalização. Em ambos os casos, a liberdade aparece como miragem: sempre há uma estrutura que delimita o possível.

Nesse movimento, Preciado fala a partir da sua “jaula escolhida e redesenhada”, lembrando que toda escolha é atravessada por condições históricas e políticas. Ele não reivindica uma saída definitiva, mas expõe a precariedade do espaço em que habita: um lugar de invenção, mas também de vigilância. A jaula pode ter sido reformada, ampliada, pintada de outras cores — ainda assim, continua sendo uma jaula.

A força dessa metáfora está em desestabilizar a ilusão da liberdade plena. Assim como o macaco vermelho, o sujeito contemporâneo vive entre grades que mudam de forma, mas não deixam de aprisionar. O gesto de Preciado não é o de lamentar, mas o de dar visibilidade a esse jogo de capturas e adaptações. O que parece emancipação pode ser apenas outro modo de confinamento, outra armadilha disfarçada de porta aberta.

Ao retomar Kafka, Preciado nos convida a pensar sobre nossas próprias jaulas. Quais são aquelas em que entramos para sobreviver? Quais redesenhamos para torná-las habitáveis? E até que ponto acreditamos ser livres quando apenas mudamos de cela? Talvez seja esse o desafio: aprender a reconhecer as grades sem nos deixar enganar pelas tintas novas com que tentam escondê-las.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O desejo é um turista inquieto



O desejo é uma criatura caprichosa. Não se contenta com pouco, mas também não se satisfaz com muito. Você pensa que finalmente encontrou o objeto perfeito — o emprego dos sonhos, a viagem ideal, o par de sapatos que vai resolver sua vida — e logo percebe que, depois do primeiro suspiro de alegria, sobra aquele restinho irritante de insatisfação. O desejo é assim: um hóspede que não paga aluguel e ainda deixa a louça suja.

Lacan dizia que o desejo não encontra objeto que o esgote. Traduzindo: ele é um turista inquieto, que nunca desfaz as malas porque já está de olho no próximo destino. É como aquele amigo que come um pedaço de pizza e, antes de engolir, já está de olho na sobremesa. O objeto nunca basta. Sempre escapa um fiapo, um resto, algo que nos empurra para a próxima busca.

E é justamente por isso que o desejo é indestrutível. Não adianta tentar matá-lo com compras, casamentos, cursos de yoga ou cerveja artesanal. Ele vai sempre se reinscrever, travestido de novo capricho: ontem era uma casa, hoje é uma viagem internacional, amanhã, amanhã sabe lá deus o que será.

O engraçado é que, nesse jogo, o desejo tem uma vitalidade invejável. Nós ficamos cansados, endividados, frustrados, mas ele? Ah, o desejo acorda cedo, toma café reforçado e já está pronto para mais um dia de insatisfação criativa. Se há uma certeza nessa vida, não é a morte nem os impostos: é que o desejo nunca cessa de desejar.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Envelheço na cidade

Hoje, na fila do mercado, uma senhora me convidou a passar para a fila dos idosos. Por alguns segundos, fiquei entre o espanto e o riso: será que já estou com essa marca no rosto, nos gestos, no jeito de esperar? Entrei, claro, mas saí dali com uma pergunta que não me largou: o que significa envelhecer em meio ao barulho e à pressa da cidade?

A cidade nos mede o tempo de outra maneira. Cada esquina é uma lembrança, cada rua guarda uma versão de nós mesmos que já não existe. E, de repente, a fila preferencial deixa de ser uma previsão distante para se tornar realidade concreta: um espaço que nos é cedido, não pela gentileza da pressa, mas pelo reconhecimento da passagem do tempo.

Envelhecer na cidade é aprender a ocupar esse espaço novo. Não como concessão, mas como direito. É olhar para os muros grafitados, para os ônibus lotados e para os jovens que correm sem parar e perceber que já estivemos ali, que ainda estamos, mas de outro modo. É continuar caminhando entre vitrines e semáforos, sabendo que o corpo desacelera, mas que a memória se expande.

Na verdade, talvez envelhecer na cidade seja justamente isso: deixar-se atravessar por ela de outro jeito. Em vez de lutar contra a pressa, acolher a pausa; em vez de se perder na multidão, descobrir novas formas de presença. Porque se há algo que a cidade nos ensina, com todas as suas filas, ruídos e surpresas, é que o tempo não é inimigo, mas companheiro de percurso.

O que importa é a qualidade dos instantes que cabem nos anos

O tempo que temos não é um estoque guardado numa prateleira, é um fio que se desenrola sem pausa, sem manual de instruções e sem devoluções....