quarta-feira, 9 de julho de 2025

Cada um que arque com as consequências da própria inércia




Há dias em que a paciência bate ponto, toma um cafezinho e se demite sem aviso prévio. A gente combina prazo, acerta tarefa, envia e-mail com três exclamações e um lembrete em negrito — e nada. Do outro lado, silêncio. Ou melhor: uma ausência ruidosa, dessas que incomodam mais que barulho de obra no andar de cima. Mas, quer saber? Resolvi parar de ser síndico do compromisso alheio. Não sou zelador de agenda de ninguém.

Enquanto alguns seguem firmes na arte da procrastinação olímpica, eu sigo com meu trabalho, minhas leituras, meus prazos. Descobri que esperar o outro cumprir o que prometeu é como tentar remar com um remo só: ou você gira em círculos ou afunda de vez. Então, que cada um reme o que é seu. Eu sigo com o meu barquinho, mesmo que às vezes precise desviar dos icebergs da negligência alheia.

Não se trata de frieza, indiferença ou desamor. É só um livramento. Aprendi que carregar nas costas o fardo que o outro largou por conveniência é garantir dor nas costas e no juízo. Não vale a pena. Se o outro não se mexe, que arque com as consequências da própria inércia. Eu, hein? Já tenho trabalho suficiente em manter minha sanidade funcional num mundo onde te aviso depois virou um código de desaparecimento voluntário.

Sigo aqui, com café na mão e prazos em dia, cuidando do que é meu. Porque compromisso, pra mim, não é enfeite de fala bonita em reunião — é prática cotidiana. E se alguém não se responsabiliza pelo que prometeu, que preste contas por isso. Já decidi que não vou mais travar meu caminho esperando por quem parou no tempo ou por quem vive na ilusão de que os prazos são elásticos e os outros, eternamente compreensivos. É uma escolha: dar mais importância ao que é de minha responsabilidade do que me deixar perturbar pelo descompromisso do outro. No fim das contas, quem responde pelo que deixo de fazer sou eu. E disso, eu não abro mão.

domingo, 6 de julho de 2025

Da Série: Contos Mínimos


O sinal fechou. Um par de passos desacelerou, outro se aproximou. No meio da travessia, os olhos se encontraram — como quem reconhece algo que nunca viu. Um segundo a mais e seria constrangimento; um a menos, desatenção. Mas foi o tempo exato. Nenhum gesto, nenhuma palavra. Só o silêncio entre dois desconhecidos que, por um breve acaso, pareceram saber de tudo. O sinal abriu. Cada um seguiu para um lado. Mas a cidade, por dentro, já não era a mesma.

Com esse Congresso Nacional: o povo que lute!



Enquanto o povo aperta o cinto, o Congresso Nacional folga o paletó. Lá dentro, entre discursos inflamados sobre “liberdade”, “família” e “Deus acima de tudo”, o que se vê é um amor incondicional pelas elites, uma fidelidade canina aos interesses dos super-ricos e um talento quase teatral para encenar proximidade com o cidadão — que, curiosamente, nunca é o desempregado, o morador da periferia ou o servidor público que perdeu direitos.

É impressionante como certos parlamentares falam como se tivessem acabado de sair de um boteco de esquina, com aquele jeitão do tamo junto, meu povo, enquanto apertam o botão do voto para retirar direitos trabalhistas, barrar investimentos sociais e beneficiar banqueiros e empresários. É a mágica do populismo da direita: fazem parecer que estão defendendo a nação, mas a tal da nação nunca mora em favela, nunca pega ônibus lotado e jamais tem o nome barrado no Serasa.

Quando chega a hora de discutir reforma tributária, taxação de grandes fortunas ou corte de privilégios, bate um silêncio que faz eco. Mas se for para isentar iate, helicóptero ou dividendos bilionários, eles viram especialistas em crescimento econômico e iniciativa privada. Parece até que estão jogando um jogo em que o povo é a peça descartável e os empresários, os donos do tabuleiro.

No fim das contas, o Congresso parece aquele amigo que promete dividir a conta no bar, mas some na hora de pagar. Faz discurso bonito, posa com a bandeira no colo e diz que ama o Brasil. Mas, na hora do voto, ama mesmo é o agronegócio, a Faria Lima e os interesses que cabem em contas bancárias bem gordas. O povo que lute. E vote de novo neles, claro.

sábado, 5 de julho de 2025

Cada tarefa que concluo parece dar cria a três outras. Estou vivendo em modo gremlins.


Há quem diga que o trabalho dignifica o homem. Eu, particularmente, desconfio que ele só está tentando me enterrar vivo. Não é exagero: finalizei um relatório e surgiram dois pareceres. Concluí uma aula e já me convocaram para três reuniões. Corrigi uma pilha de provas e ganhei, como prêmio, outra pilha — só que com anotações indecifráveis das/dos discentes que, talvez, tenham escrito em hebraico.

A sensação é de viver num buraco negro de tarefas, uma espécie de Bermuda acadêmica: tudo entra, nada sai. Tentativas de planejamento já não fazem mais sentido — minha agenda parece brincar comigo. Se coloco tempo livre no calendário, ela ri, desloca os compromissos por conta própria e me faz receber três e-mails urgentes com prazos para ontem. Um curso começa, uma disciplina termina, um artigo precisa ser escrito, outro revisado, enquanto a louça da pia observa tudo em silêncio cúmplice.

É um ciclo vicioso, quase místico: quando penso que vai aliviar, o universo responde com um segura essa pauta extra, professor. E eu seguro. Seguro o academus, o TCC, a dúvida existencial do aluno, o formulário da CAPES, os textos da disciplina da pós-graduação e a promessa (não cumprida) de dormir seis horas. Às vezes, olho para o nada e penso: era só isso mesmo que eu queria fazer da vida? E a resposta vem em forma de alerta: Seu prazo expira em 4 horas. Enviar agora?

sexta-feira, 4 de julho de 2025

O que insiste, mesmo sem nome, tem algo a dizer.




Há sentimentos que parecem se acomodar no silêncio, como se tivessem aprendido a não pedir passagem. Mas, ao contrário do que se imagina, aquilo que não se diz não desaparece. O que é calado, o que não encontra lugar para ser nomeado, permanece vibrando em algum ponto da existência. Não se trata de fraqueza ou incapacidade, mas de um limite da linguagem: há dores que não se deixam traduzir facilmente, e por isso se instalam, discretas, esperando outra forma de aparecer.

Esse “outra forma” nem sempre é previsível. Pode ser um cansaço sem explicação, um nó na garganta, uma irritação constante, um medo que não se justifica. O corpo, às vezes, fala o que não foi possível dizer. E é aí que percebemos que calar não é esquecer, e que conter não é curar. Há experiências que, por não terem sido acolhidas no tempo em que ocorreram, retornam, exigindo ser olhadas. Quando não há espaço para essa escuta, elas encontram seus próprios atalhos.

Por isso, criar condições de escuta — de si, do outro, daquilo que insiste — é gesto de cuidado. Não é preciso compreender tudo, nem encontrar respostas prontas. Mas oferecer abrigo ao que emerge já é um início. O silêncio pode ser necessário, sim, mas nunca deve ser confundido com apagamento. Há um tempo em que é preciso calar, e outro em que é preciso escutar o que esse silêncio guardou. Só assim o que foi vivido pode deixar de pesar como ameaça e passar a compor o que se é.

Viver é também atravessar essas camadas. Não somos feitos apenas do que dizemos, mas também do que não conseguimos dizer. E, por isso mesmo, o trabalho de viver implica em, pouco a pouco, fazer surgir palavras onde antes havia apenas excesso, ausência ou dor. Não se trata de forçar confissões ou buscar alívios rápidos, mas de sustentar o processo de dar lugar ao que insiste. Porque o que insiste, mesmo sem nome, tem algo a dizer.

domingo, 29 de junho de 2025

Não se trata de eliminar a falta, mas de habitá-la



Há uma promessa que atravessa muitos dos nossos desejos: a de que, em algum momento, algo ou alguém virá preencher um vazio que sentimos, dará sentido à vida, trará completude. Essa promessa, no entanto, é uma armadilha. Ela se sustenta na fantasia de que haveria uma peça faltando que, ao ser encontrada, resolveria a angústia. Mas o que nos constitui como sujeitos não é a completude, e sim essa faltaestrutural, insistente, inassimilável — que nos move, que nos faz desejar, que nos faz buscar.

O discurso amoroso, o consumo, a promessa religiosa, o sucesso profissional — todos esses lugares nos oferecem imagens de plenitude. E é fácil, muito fácil, cair nessa sedução. Há sempre um objeto a ser conquistado, uma pessoa a ser amada, um ideal a ser alcançado que, supostamente, nos tornaria finalmente inteiros. Mas ao nos lançarmos a essas promessas, o que muitas vezes encontramos é a repetição de um mesmo vazio, de uma mesma incompletude que retorna, por mais que o objeto mude.

Essa repetição não é um fracasso pessoal. Ela é da ordem da condição humana. Lacan nos lembrou que o desejo não é desejo de um objeto, mas desejo de desejo. E isso quer dizer que o que buscamos não é algo que nos complete, mas o próprio movimento de desejar. Toda tentativa de preencher a falta com um objeto concreto — uma pessoa, um cargo, uma posse — se revela, cedo ou tarde, insatisfatória. E é nesse ponto que muitos se frustram, achando que erraram de objeto, quando, na verdade, o equívoco é esperar que a falta se resolva.

Talvez seja mais honesto, e mais libertador, reconhecer que não se trata de eliminar a falta, mas de habitá-la. Viver com ela, escutá-la, fazer dela um ponto de criação. A falta, afinal, nos faz escrever, amar, errar, recomeçar. Não há alguém ou algo que venha nos completar, e tudo bem. Porque é justamente essa fenda que nos torna humanos, singulares, inacabados — e, por isso mesmo, vivos.

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Pensamento acordado dentro de nós



Há dias em que a cabeça não silencia. O corpo pede sono, mas a mente insiste em continuar — ideias, projetos, pensamentos atravessam a noite como se a madrugada fosse uma extensão. Não se trata de criatividade pulsante, mas de uma espécie de assombro: um pensamento que volta, que não cessa, que ocupa todos os lugares. Tenta-se dormir, mas é como se o pensamento estivesse acordado dentro de nós. O nome disso pode ser obsessão, ansiedade, excesso — ou talvez apenas o modo como o desejo encontra uma forma de dizer que algo não está sendo dito.

É uma ilusão pensar que podemos simplesmente "nos livrar" desses pensamentos. Porque o que retorna com insistência quer ser escutado. A cabeça que não para é, muitas vezes, o sintoma de um silêncio mais profundo: o silêncio de algo que não está sendo vivido, de um luto não feito, de um desejo contido ou de uma dor não nomeada. E o pensamento — esse que julgamos racional — pode ser apenas uma máscara para o afeto que não pôde emergir. Tentamos controlar, planejar, ocupar, mas é o inconsciente que está ali, pedindo passagem.

Às vezes, escrever ajuda. Dar forma ao que nos atravessa é uma maneira de não nos perdermos no turbilhão. Escrever não para encontrar resposta, mas para criar uma borda, um contorno para aquilo que nos habita sem forma. É também uma pausa — não do pensamento, mas da sua repetição muda. Escrever é um modo de conversar com esse excesso, de fazê-lo virar linguagem, e talvez, quem sabe, encontrar um pouco de sossego entre uma linha e outra.

Cada um que arque com as consequências da própria inércia

Há dias em que a paciência bate ponto , toma um cafezinho e se demite sem aviso prévio . A gente combina prazo, acerta tarefa, envia e-mail ...