quinta-feira, 27 de março de 2025

Nem todo sentimento precisa ser imediatamente decifrado


Ultimamente tenho me sentido como um peixe fora d’água — não tanto por estar sendo expulso de algum lugar, mas talvez por já não reconhecer a familiaridade que antes havia nos espaços e nas conversas. Há algo de deslocamento que não é apenas externo; percebo que, em muitos momentos, sou eu mesmo quem se retira, quem se mantém à margem, como quem escolhe o silêncio não por falta de palavras, mas por cansaço delas. A presença dos outros, que antes mobilizava curiosidade ou desejo de escuta, agora me soa distante, às vezes até excessiva. Tenho estado mais ausente de mim no meio dos outros.

Reconheço, no entanto, que esse sentimento de desencontro não é passivo. Eu também tenho me colocado nesse lugar — talvez por defesa, talvez por uma tentativa de reorganizar sentidos internos que ainda não nomeei. Não é desprezo pelas pessoas, tampouco uma arrogância emocional. É mais uma exaustão delicada, uma espécie de saturação da socialidade cotidiana. As conversas repetem gestos, giram em torno de temas que não me atravessam mais da mesma forma. E eu, nessa escuta que se ausenta, me percebo cada vez mais no intervalo entre estar e querer estar.

Não tenho negado esse estado. Pelo contrário: tenho tentado habitá-lo com a dignidade possível, reconhecendo que o humor também tem pausas, e que o desejo de conexão não é uma constância sem falhas. Talvez esse silêncio em mim esteja dizendo algo que ainda não entendo completamente — e tudo bem. Nem todo sentimento precisa ser imediatamente decifrado. Às vezes, ser um peixe fora d’água é também um modo de respirar diferente, de procurar outro fôlego, ainda que ele venha com a estranheza do que não se controla.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Há um esgotamento que atravessa o corpo



Este mês tem sido especialmente exaustivo. Finalizei um relatório que me consumiu quase três meses de dedicação intensa — um trabalho denso, exigente, que não se esgota em seu término, pois ainda reverbera em mim como uma sobrecarga emocional e física. E além disso, que é demais, haverá uma avaliação em relação a ele.

E quando imaginei que poderia respirar, veio esta semana com uma avalanche: quatro bancas de TCC que já aconteceram e ainda tenho mais duas amanhã, incluindo uma de doutorado, que por si só já exige uma escuta atenta, um gesto ético e uma disposição analítica que não se improvisa.

Hoje, além disso, apliquei e corrigi provas. Não há tempo de reacomodar o corpo ou reorganizar os pensamentos: tudo se sucede sem pausa. A ansiedade tem invadido minhas noites, comprometendo o sono e criando uma espécie de vigília forçada, em que o descanso não descansa. As reuniões, que parecem se multiplicar espontaneamente, tomam espaço e tempo; e os e-mails e mensagens de WhatsApp não cessam, como se houvesse uma expectativa permanente de disponibilidade total, como se meu corpo e minha atenção estivessem sempre ali, prontos, sem intervalo.

Sinto-me desgastado. Há um cansaço que não se resolve com uma boa noite de sono, porque é um esgotamento que atravessa o corpo, mas também o simbólico — é o sujeito implicado em tudo isso que se vê desbordado. Tento seguir, mas percebo que preciso reconhecer os limites, nomear o peso, deixar que ele diga algo de mim, para que não me cale. Talvez seja hora de proteger um pouco meu tempo, ainda que simbolicamente, de fazer silêncio onde tudo grita, para que eu possa me ouvir de novo.

terça-feira, 18 de março de 2025

Entre o antes e o agora

A saudade é feita de marcas e pistas que o tempo não apaga. Está no cheiro do café esquecido na mesa como uma presença que não se pode tocar. É um aroma que invade sem pedir licença, carregando consigo histórias, diálogos interrompidos, gestos que ficaram suspensos. No abraço que não veio, ela se inscreve como um frio na pele, uma falta no corpo, um espaço onde antes cabia um outro e que agora é só espera. Cada ausência se faz sentir no detalhe mínimo, na curva de um olhar que se perdeu no tempo, na voz que já não responde, mas que ainda ressoa.

Há saudades que se fixam em imagens, em fotografias amareladas pelo tempo, teimosas em conter aquilo que a vida levou adiante. Os olhos de ontem nos encaram do papel, congelados no instante que já não volta, e nessa prisão do tempo, a saudade sussurra histórias que insistem em ser contadas. Mas a ausência não é um vazio absoluto: ela se move, pulsa, se esconde entre o antes e o agora, como se cada lembrança fosse um fio que nos mantivesse ligados ao que já não está, mas que também nunca deixou de ser. No silêncio, a saudade escreve diálogos invisíveis, faz perguntas ao passado e, sem pressa, espalha suas respostas entre os dias.


Ela dança no escuro, traçando silhuetas de memórias que se recusam a desaparecer. Há noites em que os nomes sopram de leve na madrugada, como se o tempo permitisse que, por um instante, o passado nos tocasse de novo. A ausência é um gesto que continua, um fio que nunca se rompe. O que foi, de algum modo, ainda é – entre sombras e lembranças, na dobra do tempo onde a saudade segue existindo, fiel ao que um dia nos fez sentir vivos.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Aprender a lidar com a inquietante constatação de que não somos transparentes para nós mesmos


Saber sobre si é um processo complexo e, na psicanálise freudiana, não se reduz à consciência racional que temos de nós mesmos. Sigmund Freud mostrou que o sujeito não é senhor absoluto de seus pensamentos e ações, pois está atravessado pelo inconsciente, essa instância que escapa ao controle e que carrega desejos, conflitos e memórias reprimidas. O autoconhecimento, portanto, não se dá por um simples ato de reflexão, mas por um trabalho de escuta e interpretação, onde o sujeito pode se confrontar com o que nele resiste à compreensão imediata. Assim, conhecer-se implica lidar com a inquietante constatação de que não somos transparentes para nós mesmos, que há em nós um estrangeiro, um outro que nos habita e que, muitas vezes, nos surpreende em nossos gestos e palavras.

Essa impossibilidade de totalizar-se é atravessada também pela constatação de que não somos apenas bons ou maus, que o humano não pode ser reduzido a categorias estanques de pureza ou perversidade. Freud, ao formular a teoria da pulsão, mostrou que o desejo não se organiza de forma moral, mas sim como um campo de forças em conflito, no qual impulsos contraditórios coexistem. O sujeito não se define por uma essência fixa de bondade ou maldade, mas por sua relação com esses impulsos, suas escolhas e seus deslocamentos no campo do desejo. É nesse sentido que a psicanálise desestabiliza certezas e mostra que a construção do eu é marcada pela ambivalência, pelo conflito entre os ideais do supereu, os impulsos do id e as tentativas do ego de mediar essas forças.

Não ser apenas isso ou aquilo, portanto, é do humano. A identidade não é um bloco coeso, mas um campo de tensões, atravessado por discursos, afetos e desejos que não se fecham em uma única definição. Se, por um lado, há um anseio por coerência e unidade, por outro, há uma irredutível dispersão, uma incompletude constitutiva que nos mantém em movimento. Freud nos ensina que o sujeito é dividido e que aceitar essa divisão é parte do processo de lidar com o mal-estar que nos habita. O reconhecimento de que não somos inteiramente bons ou maus, de que não há uma identidade definitiva a ser alcançada, abre espaço para a ética da escuta e para a possibilidade de viver com a alteridade em nós mesmos e nos outros.

segunda-feira, 3 de março de 2025

O Conservadorismo da Classe Trabalhadora e o método da Direita



A classe trabalhadora, historicamente explorada e precarizada, muitas vezes vota em políticos de direita e extrema-direita que, na prática, retiram seus direitos e aprofundam desigualdades. Essa contradição aparente pode ser compreendida a partir da intersecção entre economia e valores culturais. Enquanto políticos progressistas defendem pautas trabalhistas, a direita compreende que grande parte da classe trabalhadora tem valores conservadores – em relação à família, sexualidade e religiãoe usa essa identificação como ferramenta eleitoral. Em um cenário onde a ideologia dominante apaga as relações de exploração, a identificação com discursos morais e nacionalistas sobrepõe-se à defesa dos próprios direitos trabalhistas.

Líderes da direita e extrema-direita, como Nikolas Ferreira, por exemplo, utilizam discursos religiosos, nacionalistas e anti-progressistas para mobilizar a classe trabalhadora. No entanto, essa aproximação ideológica esconde medidas que prejudicam diretamente os trabalhadores. O próprio Nikolas votou contra a isenção de impostos sobre 40 alimentos essenciais, dificultando o acesso da população a produtos básicos, além de apoiar a manutenção de jornadas exaustivas, como a escala 6x1, e a taxação de compras internacionais, afetando diretamente o consumo popular. Essas decisões demonstram que, apesar do apelo moral e religioso, suas políticas reforçam a exploração e o empobrecimento da classe que o elegeu.

A adesão da classe trabalhadora a políticos da direita se sustenta, em grande parte, na forma como o discurso desses políticos se estrutura. Eles não falam de economia em termos técnicos, mas em chavões morais e identitários. A esquerda, por outro lado, muitas vezes se comunica com a classe trabalhadora de maneira distante ou centrada em pautas que, embora essenciais, não são percebidas como prioridade pelos trabalhadores. O trabalhador não vê, necessariamente, um vínculo direto entre melhores condições salariais e sua identidade moral ou religiosa, mas percebe esse vínculo quando um político da direita se apresenta como “defensor da família” ou como alguém que combate uma suposta “ameaça comunista”. Assim, as pautas trabalhistas são ofuscadas por narrativas afetivas e identitárias.

Esse método da direita não é novo, mas tem se mostrado cada vez mais eficaz, especialmente em tempos de crise econômica e de descrédito nas instituições. Enquanto a esquerda enfrenta o desafio de se reconectar com os trabalhadores sem abrir mão de suas pautas sociais, a direita continua a se fortalecer explorando sentimentos de medo e pertencimento. Assim, a classe trabalhadora segue votando contra si mesma, sem perceber que os políticos que se apresentam como seus aliados na moralidade são os mesmos que destroem seus direitos e condições de vida.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Roberta Flack: um diálogo entre o silêncio e o som


Hoje, nos despedimos de uma artista cuja voz transcendeu as fronteiras do tempo e do espaço, tocando os corações de milhões com sua sensibilidade ímpar. Roberta Flack foi mais que uma cantora: foi uma mestra na arte de transformar o som em sentimento, oferecendo ao mundo uma escuta atenta às nuances da existência e às contradições da alma humana.

No palco da vida, sua música atuava como um discurso que questionava e, ao mesmo tempo, acolhia as múltiplas camadas do ser. Cada canção carregava a marca de uma interpretação que ia além da estética, desafiando os discursos hegemônicos e revelando a complexa relação entre a experiência pessoal e as formações discursivas históricas. Em sua voz, o silêncio e o som dialogavam, iluminando as opacidades que habitam a linguagem e a subjetividade.

A partida de Roberta Flack deixa um espaço irreparável no cenário cultural, mas seu legado permanece como um convite contínuo à reflexão e à resistência. Que sua memória inspire novas gerações a reconhecer a potência transformadora da arte, a valorizar o poder de uma voz que, mesmo diante das imposições ideológicas, soube eternizar sentimentos e reconstruir mundos por meio do canto.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Quanto mais recuo, mais ele avança


Às vezes, diante de um problema, sinto-me paralisado, como se houvesse um lobo desconhecido dentro da minha cabeça, uma presença silenciosa que se nutre das minhas fraquezas. Esse lobo cresce à medida que minha insegurança se fortalece, tornando-se um monstro insaciável que me convence de que não sou capaz. Evito olhar para o problema, rejeito sua existência como se ele fosse uma muralha intransponível, algo além do meu alcance. Mas essa recusa não o faz desaparecer—pelo contrário, o alimenta. O medo que sinto é a sua fonte de força, e quanto mais recuo, mais ele avança.

Essa sensação me remete a tempos passados, a momentos em que me sentia exposto, observado, vulnerável. Na escola, por exemplo, havia situações em que o simples ato de responder uma pergunta diante da turma se transformava em um campo minado de possíveis falhas. O que antes era apenas uma fantasia da incompetência, hoje retorna como uma força real, materializando-se em dificuldades que poderiam ser vencidas, mas que se tornam gigantescas dentro da minha cabeça. Carrego essa dor antiga como uma cicatriz invisível, uma marca que se reabre sempre que me coloco à prova.

Sei que não encarar um problema é ceder ao lobo, permitir que ele se fortaleça às minhas custas. Ele se alimenta do medo que construo, cresce quando me retraio e se torna mais robusto toda vez que evito um desafio. A pressão que coloco sobre mim mesmo é absurda, mas é também um mecanismo que me faz perceber que a única forma de enfraquecer esse lobo é enfrentá-lo. Olhar nos olhos do medo, reconhecê-lo e, ainda assim, dar o primeiro passo. Afinal, ignorá-lo não o faz desaparecer—pelo contrário, o transforma em algo cada vez mais voraz.

Nem todo sentimento precisa ser imediatamente decifrado

Ultimamente tenho me sentido como um peixe fora d’água — não tanto por estar sendo expulso de algum lugar, mas talvez por já não reconhecer ...