domingo, 18 de maio de 2025

Era só não dizer



Algumas palavras carregam mais do que parecem. Ditas no tempo errado, diante da pessoa errada, ou sob a desculpa da espontaneidade, deixam rastros. Nem sempre é o que se diz, mas o fato de ter sido dito. Uma notícia compartilhada sem filtro, um comentário lançado no meio de uma conversa, uma frase solta como quem não mede — ou mede demais. Há formas de falar que soam como pequenas provocações, mesmo quando ditas com um sorriso.

Nem todo mundo diz sem intenção. Às vezes, é só descuido mesmoa falta de perceber que o outro escuta de outro lugar. Mas às vezes não. Às vezes é cálculo: um jeito de marcar presença, de cutucar, de testar os limites do que ainda pode doer. A fala, nesses casos, não é sobre o que se vive agora, mas sobre o efeito que se deseja causar. E quando isso acontece, não há leveza que disfarce: fica a pergunta suspensa no ar — precisava?

Falar, a gente fala o tempo todo. Mas pensar antes, quase nunca. E é aí que mora o problema: na pressa de dizer, a gente esquece que nem tudo precisa virar enunciado. Há coisas que poderiam muito bem ter ficado no pensamento, na confidência de um amigo, na página de um diário. Dizer é escolher. E escolher com cuidado é também reconhecer que o outro escuta com o corpo todo — inclusive com as feridas que ainda não fecharam.

sábado, 17 de maio de 2025

Isso também é amor



Nem toda relação termina quando o amor acaba. Às vezes, o que se encerra é a possibilidade de seguir junto, mesmo que algo ainda pulse. E isso pode causar certa confusão. Não porque exista uma vontade de reatar, mas porque a sensação de amor remanescente nos faz pensar que talvez pudesse ter sido diferente. Não é desejo de retorno, é suposição. Uma hipótese imaginária sobre o que teria sido, caso outras escolhas tivessem sido feitas.

Mas é justamente aí que as coisas se embaralham. Amor e relação são realidades distintas. Um sentimento pode permanecer, mesmo quando a convivência não encontra mais sustentação. O amor pode até se manter vivo, mas isso não significa que a relação tenha como recomeçar.

Não há necessidade de transformar esse amor em problema, nem de tratá-lo como dívida ou promessa. Às vezes, o que fica clame apenas por ser reconhecido como parte do que fomos, como algo que nos atravessou. E tudo bem que continue ali, de outro modo.

O amor que permanece, mesmo fora da relação, pode encontrar outros modos de existir: como memória afetiva, como respeito, como compreensão mais madura do que se viveu. E talvez seja justamente isso o mais difícil: entender que não se trata de apagar o que se sentiu, mas de acolher que aquilo que houve teve seu tempo, seu jeito e seus limites. E que isso também é amor.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Da Série: Contos Mínimos

Cheguei. A porta se fechou atrás de mim como um ponto final. Tirei os sapatos, senti o chão frio sob os pés. Fui até a cozinha, pus a água no fogo. A casa estava em silêncio — não o silêncio da ausência, mas o da escuta. Sentei com a xícara quente entre as mãos. O mundo lá fora era ruído, aqui dentro era pausa. E eu, enfim, respirava.





terça-feira, 6 de maio de 2025

Da Série: Contos Mínimos




Me interessei por um cara que ainda nem conheci pessoalmente. Tudo começou ali, nas mensagens trocadas sem pressa, silêncios e perguntas. Não sei exatamente quando passei a esperar as notificações com mais vontade. Sinal dos tempos se interessar por alguém que só existe em palavras escritas, em áudios curtos, em algumas fotos. Mas tem algo ali – na atenção que me dá, no riso que parece atravessar a tela. Ainda não nos vimos, mas tem uma presença dele por aqui.

sábado, 3 de maio de 2025

O tempo que a gente tem, o tempo que a gente (se) dá




Há um descompasso constante entre o tempo disponível e o tempo que decidimos investir em algo ou alguém. Nem sempre aquilo que temos em abundância se converte em dedicação. O tempo dedicado carrega uma densidade própria porque é escolha. Em meio à pressa cotidiana, os gestos mais simples, quando atentos, produzem um tipo de presença que nenhuma agenda cheia consegue simular.

Com os anos, aprendi que a permanência nem sempre coincide com o vínculo. Algumas relações duram, ponto. Outras, breves, deixam algumas marcas. O que define esse traço não é o tempo cronológico, mas o modo como se esteve — ou não — com o outro. A ausência, quando encoberta pela presença mecânica, pesa mais do que o afastamento silencioso.

Também venho me perguntando sobre o tempo que dedico a mim mesmo e ao que realmente me importa. Entre compromissos, exigências e tentativas de corresponder, há o risco de me tornar ausente (de mim). Há algo de inquietante na constatação de que é possível viver muito e, ao mesmo tempo, passar ao largo daquilo que realmente nos movimenta. Quando isso se impõe, o tempo parece escoar sem forma.

Sigo tentando afinar a escuta para perceber onde é que me implico de verdade. Nem sempre consigo. Mas sei que o tempo que se dá, quando é escolha e não obrigação, altera o modo como habitamos os dias. E talvez seja só isso o que reste ao final: a qualidade dos vínculos que sustentamos e a forma como, por meio deles, lidamos com o tempo que temos.

segunda-feira, 28 de abril de 2025

A arte de apagar o outro


No mundo acadêmico (mas não apenas nele), há uma habilidade que alguns dominam com maestria: a arte de se apropriar do que não lhes pertence. É uma dança silenciosa — começa com elogios discretos, segue com sugestões "aprimoradas" e, num piscar de olhos, o projeto idealizado por um colega já circula com outra assinatura, como se tivesse brotado espontaneamente no solo fértil do "trabalho em equipe". A autoria, esse detalhe inconveniente, é varrida para debaixo do tapete com a naturalidade de quem não enxerga problema em plantar bandeira no terreno que não cultivou.

O mais curioso é como tudo se organiza em torno de uma certa lógica (ou uma lógica cínica): o projeto, dizem, "é de todos", "é da instituição", "é do espírito coletivo". E assim, sob a bandeira da coletividade forçada, se disfarça a violência simbólica de apagar o outro. O sujeito que idealizou, que pensou, que primeiro desenhou os contornos daquilo, vai sendo deslocado para as margens, como um assistente da própria criação. No palco, quem usurpou sorri e recebe aplausos, encenando a modéstia dos vencedores que, no fundo, sabem exatamente de onde tiraram seu brilho.

Mas há algo que nem sempre se percebe à primeira vista: o rastro de ressentimento que esse tipo de gesto deixa. Não é apenas a apropriação de uma ideia; é a violação da história que alguém tentou escrever com esforço e compromisso. O oportunismo travestido de competência gera feridas difíceis de cicatrizar, envenena a confiança e, mais cedo ou mais tarde, revela a falência ética daqueles que confundem inteligência com astúcia. Porque, no final, a verdadeira autoria carrega consigo uma marca que não pode ser totalmente apagada: a marca de quem ousou criar.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

"Morir también es ley de vida"

A música Sanar, de Jorge Drexler, é um delicado exercício de poesia sonora que atravessa afetos com rara sensibilidade. A melodia suave e a interpretação contida realçam a profundidade que fala das dores do amor, da perda e da necessidade de cura. A beleza da canção reside justamente na capacidade de dizer o indizível — aquilo que escapa à razão, mas que atravessa a existência: o nascer e o morrer dos sentimentos, a finitude que nos constitui. Drexler escolhe as palavras com precisão quase cirúrgica, como quem tateia com cuidado uma ferida aberta, sem jamais perder a ternura. Sanar não promete salvação, mas propõe acolhimento; não esconde a dor, mas a humaniza.

Os versos “Y nadie sabe por qué un día el amor nace / Ni sabe nadie por qué muere el amor un día” são um mergulho no mistério do amor como acontecimento — ele irrompe sem aviso e desaparece sem explicação, como força que escapa ao domínio da vontade. E quando Drexler completa com “Y nadie nace sabiendo, nace sabiendo / Que morir también es ley de vida”, ele nos convida a reconhecer que a morte — seja ela simbólica, afetiva ou literal — está inscrita na própria condição de viver. Há aí uma sabedoria melancólica que reconhece o limite do saber e da linguagem, mas que, paradoxalmente, nos aproxima ainda mais da experiência compartilhada de sermos humanos. O que está em cena é a beleza da fragilidade e da incerteza, que só um artista como Drexler é capaz de transformar em canto.





Sanar (Jorge Drexler)

Las lágrimas van al cielo y vuelven a tus ojos desde el marEl tiempo se va, se va y no vuelveTu corazón va a sanarVa a sanar, va a sanar

La tierra parece estar quieta y el sol parece girarY aunque parezca mentiraTu corazón va a sanarVa a sanar, va a sanarY va a volver a quebrarseMientras le toque pulsar
Y nadie sabe por qué un día el amor naceNi sabe nadie por qué muere el amor un díaY nadie nace sabiendo, nace sabiendoQue morir también es ley de vida
Así como cuando enfríe van a volver a pasarLos pájaros en bandadasTu corazón va a sanarVa a sanar, va a sanar
Volverás a esperanzarte y luego a desesperarY cuando menos lo esperesTu corazón va a sanarVa a sanar, va a sanarY va a volver a quebrarseMientras le toque pulsar
Y nadie sabe por qué un día el amor naceNi sabe nadie por qué muere el amor un díaNadie nace sabiendo, nace sabiendoQue morir también es ley de vida
También es ley de vidaAh-ah, ah-ah

Era só não dizer

Algumas palavras carregam mais do que parecem. Ditas no tempo errado, diante da pessoa errada, ou sob a desculpa da espontaneidade , deixam ...