sexta-feira, 11 de abril de 2025

Escrever é uma forma de escuta



Escrever, para mim, é uma forma de escuta. Não apenas uma escuta do mundo, mas sobretudo uma escuta de mim mesmo. Quando escrevo, as palavras que surgem na tela muitas vezes me surpreendem, como se viessem de um lugar que eu não alcançaria apenas pensando em silêncio. É como se ao escrever eu me colocasse frente a frente comigo — com minhas hesitações, meus desejos, minhas contradições. O ato de escrever se torna, assim, uma espécie de espelho que não reflete o que já sei, mas o que preciso descobrir.

Essa escrita que me escuta é também uma forma de me pensar mais. Não se trata de organizar ideias de modo linear ou concluir algo definitivo, mas de ir tateando sentidos, desmontando certezas, redesenhando percepções. O movimento das palavras na tela do computador acompanha o movimento do meu pensamento, que muitas vezes só se deixa ver por meio da linguagem. Escrever me obriga a pausar, a olhar com mais cuidado para o que passa dentro de mim — como se a língua me exigisse um mergulho mais lento, mais atento, mais comprometido com o que pulsa.

Além disso, escrever é o modo mais potente que conheço de me conectar com o que sinto e penso. Há sentimentos que só consigo nomear depois que escrevo sobre eles. Há pensamentos que só se tornam claros quando ganham forma escrita. A escrita me dá essa possibilidade de atravessar o emaranhado da vida interna e torná-lo, ao menos por instantes, visível. Ela me ajuda a perceber os deslocamentos, as insistências, os silêncios que também falam — e que dizem tanto sobre mim quanto as palavras que consigo enunciar.

Escrever, por fim, é uma maneira de refletir sobre quem sou e sobre o lugar que ocupo no mundo. É um exercício de subjetivação, de posicionamento, de escavação do próprio dizer. Quando escrevo, me coloco como sujeito atravessado pela história, pela ideologia, pelas experiências que me constituem. O que escrevo não é neutro, nem transparente — carrega marcas, filiações, afetações. E é nesse processo que, ao mesmo tempo em que escrevo, também sou escrito: pela língua, pelo tempo, pelos sentidos que me atravessam.

domingo, 6 de abril de 2025

Da Série: Contos Mínimos

O tempo tinha feito seu trabalho: os gestos não se encaixavam mais, as palavras vinham pesadas e o espaço já não era feito de espera, mas de distância, tecida por dores e cansaço de tudo que não dissemos. Sentamos como dois estranhos tentando resgatar algo que o tempo dissolveu sem pena. Entendi enfim que retornos só existem na memória — e mesmo lá, perdem o brilho.




segunda-feira, 31 de março de 2025

Entre o movimento e a pausa


Nosso tempo encarnado é um breve instante diante da imensidão do mundo. Habitar um corpo é experimentar, a cada dia, a delicada consciência da própria finitude, marcada por alegrias passageiras e dores que nos atravessam quase sempre sem aviso. A vida se faz assim, entre o movimento e a pausa, entre encontros inesperados e despedidas inevitáveis, revelando-nos constantemente nossa fragilidade e força diante da passagem inexorável do tempo.

É justamente por sua delicadeza que a vida nos toca tão profundamente, nos surpreendendo em pequenos gestos e silêncios prolongados. A vida é sempre hiância, abertura inesperada, espaço de faltas e desejos jamais plenamente satisfeitos. É nessa abertura, nesse intervalo, que habitam nossos sonhos, angústias, esperanças e também nossa humanidade mais profunda. Reconhecer a hiância da vida é aceitar que somos feitos não só do que conquistamos, mas também daquilo que nunca conseguimos alcançar plenamente.

Assim, nosso tempo encarnado convida-nos à delicadeza do olhar, à aceitação das faltas e ao acolhimento das perguntas que permanecem sem resposta. Viver é dançar à beira do abismo, é saber que somos transitórios, que cada instante é único, irrepetível, sempre marcado pela ausência que o atravessa. É precisamente essa consciência que confere beleza e sentido à existência: saber que somos efêmeros nos permite amar mais profundamente, cuidar mais atentamente e abraçar com maior intensidade cada instante desse tempo que nos é dado viver.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Nem todo sentimento precisa ser imediatamente decifrado


Ultimamente tenho me sentido como um peixe fora d’água — não tanto por estar sendo expulso de algum lugar, mas talvez por já não reconhecer a familiaridade que antes havia nos espaços e nas conversas. Há algo de deslocamento que não é apenas externo; percebo que, em muitos momentos, sou eu mesmo quem se retira, quem se mantém à margem, como quem escolhe o silêncio não por falta de palavras, mas por cansaço delas. A presença dos outros, que antes mobilizava curiosidade ou desejo de escuta, agora me soa distante, às vezes até excessiva. Tenho estado mais ausente de mim no meio dos outros.

Reconheço, no entanto, que esse sentimento de desencontro não é passivo. Eu também tenho me colocado nesse lugar — talvez por defesa, talvez por uma tentativa de reorganizar sentidos internos que ainda não nomeei. Não é desprezo pelas pessoas, tampouco uma arrogância emocional. É mais uma exaustão delicada, uma espécie de saturação da socialidade cotidiana. As conversas repetem gestos, giram em torno de temas que não me atravessam mais da mesma forma. E eu, nessa escuta que se ausenta, me percebo cada vez mais no intervalo entre estar e querer estar.

Não tenho negado esse estado. Pelo contrário: tenho tentado habitá-lo com a dignidade possível, reconhecendo que o humor também tem pausas, e que o desejo de conexão não é uma constância sem falhas. Talvez esse silêncio em mim esteja dizendo algo que ainda não entendo completamente — e tudo bem. Nem todo sentimento precisa ser imediatamente decifrado. Às vezes, ser um peixe fora d’água é também um modo de respirar diferente, de procurar outro fôlego, ainda que ele venha com a estranheza do que não se controla.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Há um esgotamento que atravessa o corpo



Este mês tem sido especialmente exaustivo. Finalizei um relatório que me consumiu quase três meses de dedicação intensa — um trabalho denso, exigente, que não se esgota em seu término, pois ainda reverbera em mim como uma sobrecarga emocional e física. E além disso, que é demais, haverá uma avaliação em relação a ele.

E quando imaginei que poderia respirar, veio esta semana com uma avalanche: quatro bancas de TCC que já aconteceram e ainda tenho mais duas amanhã, incluindo uma de doutorado, que por si só já exige uma escuta atenta, um gesto ético e uma disposição analítica que não se improvisa.

Hoje, além disso, apliquei e corrigi provas. Não há tempo de reacomodar o corpo ou reorganizar os pensamentos: tudo se sucede sem pausa. A ansiedade tem invadido minhas noites, comprometendo o sono e criando uma espécie de vigília forçada, em que o descanso não descansa. As reuniões, que parecem se multiplicar espontaneamente, tomam espaço e tempo; e os e-mails e mensagens de WhatsApp não cessam, como se houvesse uma expectativa permanente de disponibilidade total, como se meu corpo e minha atenção estivessem sempre ali, prontos, sem intervalo.

Sinto-me desgastado. Há um cansaço que não se resolve com uma boa noite de sono, porque é um esgotamento que atravessa o corpo, mas também o simbólico — é o sujeito implicado em tudo isso que se vê desbordado. Tento seguir, mas percebo que preciso reconhecer os limites, nomear o peso, deixar que ele diga algo de mim, para que não me cale. Talvez seja hora de proteger um pouco meu tempo, ainda que simbolicamente, de fazer silêncio onde tudo grita, para que eu possa me ouvir de novo.

terça-feira, 18 de março de 2025

Entre o antes e o agora

A saudade é feita de marcas e pistas que o tempo não apaga. Está no cheiro do café esquecido na mesa como uma presença que não se pode tocar. É um aroma que invade sem pedir licença, carregando consigo histórias, diálogos interrompidos, gestos que ficaram suspensos. No abraço que não veio, ela se inscreve como um frio na pele, uma falta no corpo, um espaço onde antes cabia um outro e que agora é só espera. Cada ausência se faz sentir no detalhe mínimo, na curva de um olhar que se perdeu no tempo, na voz que já não responde, mas que ainda ressoa.

Há saudades que se fixam em imagens, em fotografias amareladas pelo tempo, teimosas em conter aquilo que a vida levou adiante. Os olhos de ontem nos encaram do papel, congelados no instante que já não volta, e nessa prisão do tempo, a saudade sussurra histórias que insistem em ser contadas. Mas a ausência não é um vazio absoluto: ela se move, pulsa, se esconde entre o antes e o agora, como se cada lembrança fosse um fio que nos mantivesse ligados ao que já não está, mas que também nunca deixou de ser. No silêncio, a saudade escreve diálogos invisíveis, faz perguntas ao passado e, sem pressa, espalha suas respostas entre os dias.


Ela dança no escuro, traçando silhuetas de memórias que se recusam a desaparecer. Há noites em que os nomes sopram de leve na madrugada, como se o tempo permitisse que, por um instante, o passado nos tocasse de novo. A ausência é um gesto que continua, um fio que nunca se rompe. O que foi, de algum modo, ainda é – entre sombras e lembranças, na dobra do tempo onde a saudade segue existindo, fiel ao que um dia nos fez sentir vivos.

segunda-feira, 10 de março de 2025

Aprender a lidar com a inquietante constatação de que não somos transparentes para nós mesmos


Saber sobre si é um processo complexo e, na psicanálise freudiana, não se reduz à consciência racional que temos de nós mesmos. Sigmund Freud mostrou que o sujeito não é senhor absoluto de seus pensamentos e ações, pois está atravessado pelo inconsciente, essa instância que escapa ao controle e que carrega desejos, conflitos e memórias reprimidas. O autoconhecimento, portanto, não se dá por um simples ato de reflexão, mas por um trabalho de escuta e interpretação, onde o sujeito pode se confrontar com o que nele resiste à compreensão imediata. Assim, conhecer-se implica lidar com a inquietante constatação de que não somos transparentes para nós mesmos, que há em nós um estrangeiro, um outro que nos habita e que, muitas vezes, nos surpreende em nossos gestos e palavras.

Essa impossibilidade de totalizar-se é atravessada também pela constatação de que não somos apenas bons ou maus, que o humano não pode ser reduzido a categorias estanques de pureza ou perversidade. Freud, ao formular a teoria da pulsão, mostrou que o desejo não se organiza de forma moral, mas sim como um campo de forças em conflito, no qual impulsos contraditórios coexistem. O sujeito não se define por uma essência fixa de bondade ou maldade, mas por sua relação com esses impulsos, suas escolhas e seus deslocamentos no campo do desejo. É nesse sentido que a psicanálise desestabiliza certezas e mostra que a construção do eu é marcada pela ambivalência, pelo conflito entre os ideais do supereu, os impulsos do id e as tentativas do ego de mediar essas forças.

Não ser apenas isso ou aquilo, portanto, é do humano. A identidade não é um bloco coeso, mas um campo de tensões, atravessado por discursos, afetos e desejos que não se fecham em uma única definição. Se, por um lado, há um anseio por coerência e unidade, por outro, há uma irredutível dispersão, uma incompletude constitutiva que nos mantém em movimento. Freud nos ensina que o sujeito é dividido e que aceitar essa divisão é parte do processo de lidar com o mal-estar que nos habita. O reconhecimento de que não somos inteiramente bons ou maus, de que não há uma identidade definitiva a ser alcançada, abre espaço para a ética da escuta e para a possibilidade de viver com a alteridade em nós mesmos e nos outros.

Segunda-feira: o começo que já carrega o peso do meio

Segunda-feira tem um gosto estranho. É começo, mas nunca parece recomeço. A semana mal começa e já estou no compasso acelerado: trabalho pel...