segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Envelheço na cidade

Hoje, na fila do mercado, uma senhora me convidou a passar para a fila dos idosos. Por alguns segundos, fiquei entre o espanto e o riso: será que já estou com essa marca no rosto, nos gestos, no jeito de esperar? Entrei, claro, mas saí dali com uma pergunta que não me largou: o que significa envelhecer em meio ao barulho e à pressa da cidade?

A cidade nos mede o tempo de outra maneira. Cada esquina é uma lembrança, cada rua guarda uma versão de nós mesmos que já não existe. E, de repente, a fila preferencial deixa de ser uma previsão distante para se tornar realidade concreta: um espaço que nos é cedido, não pela gentileza da pressa, mas pelo reconhecimento da passagem do tempo.

Envelhecer na cidade é aprender a ocupar esse espaço novo. Não como concessão, mas como direito. É olhar para os muros grafitados, para os ônibus lotados e para os jovens que correm sem parar e perceber que já estivemos ali, que ainda estamos, mas de outro modo. É continuar caminhando entre vitrines e semáforos, sabendo que o corpo desacelera, mas que a memória se expande.

Na verdade, talvez envelhecer na cidade seja justamente isso: deixar-se atravessar por ela de outro jeito. Em vez de lutar contra a pressa, acolher a pausa; em vez de se perder na multidão, descobrir novas formas de presença. Porque se há algo que a cidade nos ensina, com todas as suas filas, ruídos e surpresas, é que o tempo não é inimigo, mas companheiro de percurso.

sábado, 23 de agosto de 2025

Meu toc, minhas regras

Eu queria ser do tipo que escreve em meio ao caos. Pilhas de louça na pia, roupas no chão, vizinho berrando, cachorro latindo. Mas não: se a caneta não está alinhada com o caderno, já sinto que o universo conspira contra mim. Para escrever, preciso de cenário de catálogo: mesa limpa, música suave, tudo sob controle.

É patético, eu sei. Enquanto alguns transformam a bagunça em inspiração, eu fico refém de uma organização neurótica. O caos me intimida, ele é, definitivamente, mais inteligente do que eu. Fico pequeno diante dele, incapaz de lutar.

Talvez seja covardia. Talvez seja frescura. Mas o fato é que só consigo escrever quando, ao redor, tudo está domado. A desordem grita mais alto do que qualquer ideia que eu poderia ter. E, convenhamos, competir com ela é batalha perdida.

Então, que me julguem. Eu arrumo, eu limpo, eu organizo. E só depois escrevo. Porque, se o mundo lá fora insiste em ser um pandemônio, ao menos dentro da minha mesa eu quero a ilusão de que mando em alguma coisa.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A impossibilidade das garantias absolutas



A angústia, em Freud, é um dos afetos mais complexos do humano. Ela não é simplesmente um medo ou um susto, porque o medo está ligado a um objeto definido — ter medo de um animal, de uma situação, de uma perda concreta. A angústia, ao contrário, é vivida como um mal-estar difuso, sem objeto preciso. Por isso, Freud a aproxima da experiência de desamparo: é a sensação de estar diante de uma ameaça, mas sem saber exatamente de onde ela vem ou como enfrentá-la.

Para Freud, a angústia está ligada à condição mesma de ser sujeito. Desde cedo, a criança experimenta momentos de separação, ausência e perda que ficam registrados na vida psíquica. Esses momentos reaparecem na angústia, que se apresenta como a marca de que o sujeito é atravessado por faltas e limites. Assim, a angústia não é um acidente ou algo que poderia ser totalmente evitado, mas uma experiência estrutural da existência.

Ela também se diferencia do simples sofrimento. O sofrimento pode vir de uma dor física ou de uma perda concreta, mas a angústia mostra que há algo para além disso: um vazio, uma falta que não se resolve apenas eliminando a causa imediata da dor. Nesse sentido, Freud vê na angústia um afeto que aponta para o que é mais radical no humano — a impossibilidade de ter garantias absolutas, o confronto com aquilo que escapa ao controle e à razão.

Dizer o que é a angústia em Freud, portanto, é dizer que ela é o afeto da falta e do desamparo. Ela nos lembra de que não temos respostas prontas para tudo, nem controle sobre a vida e suas perdas. Incômoda, inquietante, às vezes paralisante, a angústia é também um sinal de que estamos vivos, atravessados por desejos, incertezas e pela própria fragilidade que nos constitui.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Quando o choro vale mais que a solução


Há adultos que tratam seus problemas como se fossem relíquias de família. Guardam, exibem, dão nome, passam de geração em geração. Quando alguém sugere que talvez fosse hora de resolver, a reação é quase de indignação: “como assim, jogar fora minha preciosidade?”. Afinal, sem os dramas cuidadosamente cultivados, o que restaria para contar nos almoços de domingo?

É um espetáculo curioso: a vida oferece soluções práticas — simples como um copo de água — mas eles preferem o deserto. Andam quilômetros reclamando de sede, com a garrafinha na mão, só para poder narrar a epopeia. O problema deixa de ser obstáculo e vira personagem principal de uma novela em que eles mesmos escrevem e protagonizam cada capítulo.

E quando alguém sugere uma saída, é como estragar o roteiro. A solução, para eles, tem gosto de spoiler: arruína a trama, desmonta a catarse. Melhor manter a ferida aberta, porque dá mais likes, rende consolo, produz aquele ar de “sou incompreendido”. Resolver seria um atentado contra o drama cuidadosamente ensaiado.

Assim, convivemos com uma legião de adultos que reinventaram o dedo preso que não está preso: retiram quando querem, voltam a colocar só para gritar, e fazem disso o enredo eterno. O curioso é que, sem perceber, acabam aprisionados não pela porta, mas pelo prazer de continuar reclamando dela.

sábado, 16 de agosto de 2025

Quanto mais cansado o público, mais fácil naturalizar o absurdo


A extrema direita aprendeu a transformar o espaço da notícia em palco permanente. É como se cada manchete fosse uma cortina que se abre diariamente para a repetição de um espetáculo ruidoso. O método é simples: falar, provocar, escandalizar, repetir. Assim, o noticiário se torna um carrossel de polêmicas que giram sem parar, deixando o público entre o espanto e o cansaço. Não se trata de informar, mas de ocupar — de marcar presença, de garantir que os olhos e ouvidos estejam sempre voltados para o mesmo ponto.

Essa ocupação constante produz um efeito corrosivo. O leitor, o telespectador, o ouvinte são bombardeados sem descanso, como se não houvesse mais silêncio possível no espaço público. O ruído se converte em fundo de tela, e a cada novo dia a exaustão se acumula. O desgaste não vem apenas do excesso de informação, mas da repetição de um mesmo enredo: um inimigo inventado, uma afronta teatral, uma frase dita para ferir. O ciclo se fecha e logo recomeça, como se fosse impossível escapar.

A própria mídia, na ânsia de noticiar tudo, acaba reproduzindo o método que a desgasta. Ao transformar cada provocação em manchete, reforça o espetáculo diário e ajuda a manter a extrema direita no centro da cena. O jornalismo, nesse processo, parece esquecer que a visibilidade também é uma forma de poder, e que dar palco constante ao escândalo significa legitimar a encenação. Assim, o que deveria ser crítica e investigação se converte em vitrine: o noticiário torna-se cúmplice involuntário do cansaço político que denuncia.

O resultado é que a política se converte em um espetáculo cansativo, em que o barulho substitui o debate. Em vez de argumentos, slogans. Em vez de reflexão, ataques. A exaustão se torna um recurso político:
quanto mais cansado o público, mais fácil naturalizar o absurdo
. Resistir a esse método significa olhar para além da cortina de fumaça e buscar nos intervalos — nos temas apagados e nas vozes silenciadas — a possibilidade de outro debate. Reconhecer o cansaço é o primeiro passo; romper o ciclo e recuperar a densidade da palavra pública é o desafio urgente.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Um país generoso



O Brasil é mesmo um país generoso. A gente trabalha, paga imposto, enfrenta fila no banco e engarrafamento no trânsito para, no fim das contas, custear o salário de Eduardo Bolsonaro – que, do alto de seu mandato, empenha-se com afinco numa missão: trabalhar contra os interesses nacionais. Sim, somos um povo tão desprendido que bancamos até quem atua como advogado de causas estrangeiras. E não de qualquer estrangeiro, mas do nosso ilustre amigo do norte, Donald Trump, símbolo vivo do extremismo made in USA. É quase um programa de intercâmbio diplomático às avessas: nós pagamos, eles mandam a pauta.

Pense bem: enquanto nós professores, médicos e pesquisadores brasileiros precisam lutar por reajustes e recursos, o filho do ex-presidente ocupa o seu cargo público como se fosse um porta-voz de Washington, vendendo a imagem de que a extrema direita americana é o farol que devemos seguir. E tudo isso com um detalhe encantador: sendo sustentado pelo contribuinte brasileiro. É como pagar para alguém morar na sua casa e, em troca, ele distribuir panfletos dizendo que o vizinho rico é mais legal que você.

A relação é tão simbiótica que chega a ser poética. Trump alimenta a retórica de Eduardo, e Eduardo alimenta Trump com discursos e gestos que reforçam essa confraria política internacional. Enquanto isso, assuntos como soberania nacional, política externa equilibrada e defesa dos interesses do Brasil ficam no rodapé da agenda. É como se estivéssemos numa novela ruim em que o personagem principal sempre troca a própria família por um jantar no clube do outro lado da cidade.

E nós? Bom, nós seguimos no papel de figurantes que bancam o espetáculo. Pagamos os salários, as viagens e o megafone político, enquanto assistimos à cena se repetir: um representante eleito aqui preferindo trabalhar para lá. Talvez seja hora de rever o roteiro e perguntar se essa “internacional da extrema direita” vale o preço do ingresso – que, por sinal, está debitado diretamente da nossa conta.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

O compromisso com os direitos humanos tem fronteiras definidas pela conveniência



Prometo que será a última vez que me refiro ao Donald Duck Trump. O presidente dos Estados Unidos fez questão de se manifestar publicamente sobre a denúncia de violações de direitos humanos no Brasil. Foi rápido, enfático, com palavras que, na superfície, soam como defesa intransigente dos princípios democráticos e da dignidade humana. Ao se pronunciar dessa forma, colocou o país no centro da vitrine internacional, reforçando a imagem de guardião global dos direitos que os EUA gostam de dizer que representam. Mas, como quase sempre acontece na política, o que é dito tem tanto peso quanto aquilo que fica de fora.

Porque, quando se olha para outros cenários, o mesmo presidente mantém um silêncio eloquente. Israel, por exemplo, segue sob críticas de organizações internacionais por ações que, para muitos, configuram violações massivas de direitos humanos. Mas, nesse caso, as palavras de condenação não atravessam o Atlântico. Ao contrário, as declarações oficiais tendem a reforçar alianças históricas, evitando confrontos que possam afetar interesses estratégicos.

O mesmo acontece com El Salvador. Sob um governo que adota políticas de encarceramento em massa e restringe liberdades civis em nome da segurança, a Casa Branca prefere o tom neutro, quando não opta pelo elogio discreto ao combate ao crime. Não há a mesma urgência em apontar violações, nem a mesma pressão pública para a correção de rumos. É como se o compromisso com os direitos humanos tivesse fronteiras definidas pela conveniência geopolítica.

E, curiosamente, essa lógica seletiva se repete dentro das próprias fronteiras dos EUA. Questões como o tratamento dado a imigrantes — muitos detidos em condições precárias, separados de suas famílias ou deportados sem garantias processuais — raramente ganham o mesmo tom inflamado que se aplica a violações fora do país. O mesmo vale para as minorias de gênero e sexualidade, que enfrentam retrocessos legislativos, ataques à liberdade de expressão e violência motivada por ódio, enquanto o governo mantém um discurso genérico de apoio, sem enfrentar de forma decisiva as raízes estruturais dessa exclusão.

Essa assimetria nos mostra que, no palco internacional e doméstico, as falas presidenciais são gestos calculados. Criticar o Brasil pode ter um custo baixo nas alianças e ainda render dividendos políticos internos e externos. Já confrontar Israel, El Salvador ou assumir um enfrentamento efetivo contra as injustiças que atingem imigrantes e minorias de gênero mexeria com interesses econômicos, militares e estratégicos profundamente enraizados. No fim, o silêncio também fala — e, nesse caso, diz muito mais sobre a política do que qualquer frase de efeito cuidadosamente pronunciada.

O que importa é a qualidade dos instantes que cabem nos anos

O tempo que temos não é um estoque guardado numa prateleira, é um fio que se desenrola sem pausa, sem manual de instruções e sem devoluções....