quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Quando o remendo vira rotina



Há momentos em que a gente compra coisas que não precisa tanto assim. Um objeto, uma roupa, um jantar fora, algo que chega como promessa de alívio. Não se trata de excesso ou falha de caráter. Trata-se de um gesto comum, quase banal, de tentar se sentir um pouco melhor consigo mesmo. O consumo, nesses casos, encosta menos na utilidade e mais na sensação de valer alguma coisa naquele instante.

Quando o dinheiro entra em cena, ele carrega muito mais do que poder de compra. Ele traz junto sinais de pertencimento, de reconhecimento, de estar à altura do que o mundo parece exigir. Gastar, presentear-se ou exibir algo novo pode produzir uma sensação breve de acolhimento, como se o sujeito fosse visto, validado, incluído. O afeto não está no objeto, mas no que ele permite encenar socialmente.

Essa busca não acontece porque as pessoas são vazias ou fúteis. Ela aparece quando o valor de si anda abalado, quando algo falha no trabalho, nas relações ou na própria imagem. O consumo entra como um remendo provisório, uma tentativa de recompor o ânimo, de sustentar a própria dignidade diante de um cotidiano que cobra demais e oferece pouco retorno afetivo.

O problema começa quando esse remendo vira rotina e a sensação boa dura cada vez menos. O circuito se repete, o alívio encurta, e o gesto precisa ser refeito. Não há vilões nem heróis nesse movimento. Há sujeitos tentando se manter de pé em um mundo que traduz amor, sucesso e reconhecimento em cifras, vitrines e curtidas, deixando pouco espaço para outras formas de sustentar o próprio valor.

domingo, 7 de dezembro de 2025

O mundo sempre continua rodando



Há quem acorde todos os dias pronto para interpretar um personagem. De manhã, a versão profissional impecável; à tarde, o sujeito compreensível e educado; à noite, o ser sociável que sempre tem uma opinião leve e palatável. No fundo, é como se existisse um guarda-roupa infinito de identidades, cada qual escolhida de acordo com o clima, a companhia e o humor. O problema é que, depois de tanto trocar de figurino, pode parecer que falta alguém ali: justamente quem deveria estar no comando.

Bancar-se é outra conversa. É quando o sujeito decide que suas escolhas não precisam passar pelo crivo de uma plateia invisível. É quando percebe que o desejo não espera autorização externa para existir. É um gesto simples e, ao mesmo tempo, audacioso: não se trata de fazer o que der na telha, mas de não pedir desculpas por ser quem se é. Dá trabalho, claro. Sustentar os próprios quereres exige coragem para lidar com a surpresa alheia, o desconforto dos que queriam previsibilidade e, sobretudo, a própria insegurança. Ainda assim, é um alívio inesperado descobrir que o mundo continua girando.

Ao encarar essa empreitada, as máscaras sociais revelam seu caráter cansativo. Elas servem para agradar, para evitar perguntas indesejadas, para fingir convicções que não pertencem a quem as usa. E, mesmo assim, insistimos nelas como se fossem acessórios indispensáveis. É curioso: esconder-se cansa mais do que aparecer. Não há almofada mais dura do que uma vida vivida aos pedaços, sempre editada, sempre adaptada às expectativas de terceiros.

Assumir-se, portanto, não é um ato heroico reservado aos iluminados do autoconhecimento. É um aprendizado cotidiano de coerência interna, um exercício de escolha: seguir o fluxo alheio ou responder aos próprios movimentos. Há dias em que essa tarefa parece suave, quase natural; em outros, surge a tentação de entrar de novo no figurino confortável. A diferença é que, depois de experimentar a leveza de bancar-se, qualquer máscara parece apertada demais. Descobre-se, então, que viver sem disfarces não elimina dificuldades, mas permite algo que vale mais do que qualquer aplauso social: a tranquilidade de reconhecer-se em cada passo que se dá.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A integridade não se negocia



Há uma linha tênue entre o trabalho e aquilo que se vive fora dele, mas existe um princípio que sustenta qualquer atividade profissional: quem assume uma função responde por ela. Um pedido feito no horário de expediente convoca uma responsabilidade, seja responder, encaminhar, resolver ou, no mínimo, dar retorno. Silenciar, fingir ausência ou tratar demandas como algo voluntário enfraquece o sentido do próprio cargo e coloca em risco a confiança que sustenta o ambiente  de trabalho.

O vínculo pessoal pode até florescer entre colegas, mas essa é uma consequência, não um propósito. A convivência diária cria aproximações, afinidades e até cumplicidades, mas nada disso ocupa o lugar da tarefa que nos foi atribuída. A cobrança existe porque há uma posição ocupada. Ninguém está ali apenas porque é simpático, agradável ou querido. A presença se justifica pela capacidade de resposta àquilo que foi assumido institucionalmente.

Em ambientes profissionais, o gesto de tratar a amizade como porta de entrada para privilégios, tolerâncias ou desculpas desestabiliza as relações. Quando a cordialidade passa a valer mais do que a entrega, cria-se uma confusão perigosa entre afeto e responsabilidade. É reconfortante trabalhar com pessoas que admiramos, mas a prioridade recai sobre o trabalho realizado. Se houver afinidade, ótimo. Caso não exista, ainda assim a expectativa permanece: cumprir aquilo que cabe a cada um.

Um capítulo à parte é ocupado por aqueles sujeitos que se dedicam a bajulações. Esse tipo de presença se molda ao desejo do chefe, esvazia o pensamento e troca a reflexão por elogios permanentes. O objetivo não é contribuir, mas se manter protegido, garantindo benefícios financeiros e alguma sensação de importância emprestada. Esses personagens lembram constantemente que, no mundo profissional, há quem prefira o conforto submisso ao risco de pensar. Quem sustenta o próprio lugar, porém, sabe que a integridade nunca se negocia.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Ele atravessou a vida como quem caminha sem abrigo



Gerson de Melo Machado atravessou a vida como quem caminha sem abrigo. Sua história, que poderia ter sido apenas a de um rapaz de 19 anos tentando encontrar algum lugar no mundo, se desdobra como um retrato de desamparo. Recebido pela rede pública ainda criança, circulando entre atendimentos, instituições e fugas, ele parecia sempre escapar das mãos que tentavam segurá-lo. Aos olhos de quem o acompanhou desde a infância, havia ali um menino que não teve chance de aprender a existir com alguma proteção mínima.

O domingo em que perdeu a vida no Parque Arruda Câmara expôs o ponto extremo dessa trajetória. O ato de escalar muros e ingressar no recinto da leoa, mais do que uma aventura inconsequente, parece ecoar uma luta silenciosa com limites que nunca lhe foram ofertados de modo consistente. A cena registrada por visitantes transformou-se rapidamente em notícia, mas antes disso havia um jovem atravessado por uma sucessão de ausências, diagnósticos, tentativas de cuidado e interrupções bruscas.

A morte de Gerson, provocada pela reação instintiva do animal, tornou-se um acontecimento que não se encerra no laudo pericial. O parque fechado, a prefeitura instaurando apurações e a leoa em estado de estresse compõem o cenário imediato, mas o que permanece é outra dimensão: a de um percurso marcado por fragilidades, abandonos e escolhas que nunca foram totalmente dele. É impossível olhar para a imagem daquele momento sem pensar nos caminhos que o empurraram até ali.

O que se inscreve agora em nossa memória é mais do que o ataque no zoológico. A história de Gerson convoca perguntas sobre o que se faz, enquanto sociedade, com pessoas que nascem e crescem fora de qualquer horizonte de cuidado contínuo. Sua morte deixa uma tristeza áspera, dessas que não se desfazem com o tempo, porque aponta para distâncias que se ampliam entre quem tem amparo e quem aprende a sobreviver sozinho. A vida desse rapaz, interrompida de maneira brutal, nos coloca diante de uma ausência que não pode ser naturalizada.

domingo, 30 de novembro de 2025

Da Série: Contos mínimos



O domingo parecia um lençol estendido no varal, cheio de dobras onde o tempo se escondia. Acordei tarde, tomei café encarando o lado de fora (de mim), já que olhar para dentro me cansava demais. O dia seguia seu curso e, quando percebi, ele já se despedia, levando consigo a impressão de que algo importante poderia ter acontecido, mas não aconteceu. Ainda assim, guardei um certo alívio na ideia de haver dias que não cobram nada além de estar vivo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Sem saber exatamente o quê








Há períodos em que o ritmo interno desacerta e tudo parece mais pesado do que deveria. Há dias em que levantar, responder mensagens e cumprir prazos soa como um esforço desproporcional. Neste momento, estou dentro desse redemoinho silencioso, tentando compreender o que acontece comigo enquanto a vida segue lá fora. Não se trata de grandes tragédias, apenas um desgaste acumulado que insiste em se anunciar.

O curioso é que investi cada centímetro da minha energia no trabalho, acreditando que a dedicação intensa pudesse funcionar como um escudo. Permaneci ocupado, sempre com algo a fazer, sempre com uma tarefa urgente. Foi um modo de evitar olhares mais profundos sobre aquilo que, no fundo, eu já sabia. A agenda cheia serviu de trilha para fugir de mim mesmo.

A parte mais incômoda dessa história é reconhecer a própria participação no enredo. Não existe vilão externo para apontar. Os obstáculos que enfrento nasceram de decisões que eu mesmo tomei, de expectativas que construí, de escolhas que fiz tentando dar conta de tudo. Esse reconhecimento pesa, aperta o peito e provoca uma mistura de angústia e ansiedade difícil de administrar.

Ainda assim, esse movimento me coloca diante de constatações que já não consigo contornar. Percebo que há limites que ignorei e sinais que preferi não enxergar, como se fosse possível adiar indefinidamente o encontro comigo mesmo. Não é uma epifania, apenas a evidência de um cansaço que cobra presença e pede nome. Talvez não seja o momento de transformar isso em algo produtivo ou inspirador — é simplesmente o que está posto. Sigo atravessando essa fase sem clareza sobre o que virá depois, convivendo com a sensação incômoda de que algo precisa mudar, mesmo sem saber exatamente o quê.

domingo, 23 de novembro de 2025

No excesso, algo pede passagem



Os dias se enfileiram e eu me vejo atravessando cada um com uma espécie de pressa silenciosa. Saio demais, como se a rua pudesse oferecer um intervalo para aquilo que não nomeio. Como demais, como se o sabor ocupasse um espaço que não sei preencher. Trabalho até tarde, ultrapasso limites, empilho tarefas em uma tentativa quase automática de convencer a mim mesmo de que seguir em movimento impede qualquer pergunta mais funda de surgir.

Percebo também o quanto tenho falado. Falo sobre tudo, sobre assuntos leves, sobre bobagens, sobre o que não importa. Falo para preencher o ar, para não deixar brechas, como se o silêncio pudesse me encurralar. E, ao mesmo tempo, essa falação toda guarda algo de curioso: um gesto que tenta lidar com o incômodo. Há uma espécie de ritmo acelerado que vou sustentando, como quem tropeça de propósito para não precisar olhar para o que faz tropeçar.

Quando olho com mais cuidado, vejo que o excesso aparece como uma sobreposição: um gesto que procura cobrir fissuras que não sei de onde vêm. Há sempre algo que escapa. Uma sensação de intervalo, de descompasso, que tento contornar esticando os limites. Como se a rua, a comida, o trabalho e as palavras formassem uma superfície lisa capaz de esconder a irregularidade que insiste em aparecer.

Sei que há faltas que rondam tudo isso. Desconfio quais sejam elas. Elas acenam, mesmo quando tento ignorá-las. E reconhecer essas presenças não resolve nada de imediato, embora abra espaço para respirar de outro modo. Entre excessos e silêncios possíveis, sigo tentando compreender o que, afinal, pede passagem.

sábado, 15 de novembro de 2025

O desejo de saber: eis o cartel




Lacan imaginou o cartel como uma maneira diferente de estudar e pensar junto. Nada de salas cheias, palestras longas ou hierarquias entre quem sabe e quem aprende. No lugar disso, pequenos grupos — quatro ou cinco pessoas — que se reúnem em torno de um tema comum, algo que as instiga. Cada participante escolhe o que quer investigar dentro desse tema e o faz a partir da própria experiência, das suas leituras, das suas perguntas. O cartel nasce dessa aposta: que o saber não vem de cima, mas do trabalho compartilhado entre sujeitos que pensam.

O curioso é que, embora o cartel tenha essa aparência simples, ele carrega um gesto profundamente ético. Lacan propõe o cartel como um antídoto contra o mestre que sabe tudo. Ninguém ocupa o lugar de quem detém a verdade. Há apenas um coordenador — chamado de mais-um — cuja função não é ensinar, mas manter o desejo de trabalho em movimento. É ele quem ajuda o grupo a não se perder, a não se acomodar, a sustentar o pensamento quando o entusiasmo diminui ou quando o silêncio pesa demais.

Nesse sentido, o cartel é uma experiência de deslocamento. Cada um trabalha a partir do que não sabe, do ponto que o inquieta. Não se trata de chegar a uma conclusão definitiva, mas de produzir algo — um texto, uma reflexão, uma pergunta — que marque a passagem pelo tema. O saber que emerge ali não é propriedade de ninguém, mas efeito do encontro entre sujeitos que se interrogam juntos.

Talvez seja isso o mais interessante: o cartel não é um grupo de estudo no sentido tradicional, é quase uma forma de laço. Um lugar pequeno onde o pensamento pode respirar, tropeçar, retomar fôlego e se reinventar. Nele, o que conta não é a resposta final, mas o caminho de cada um — esse movimento que, ao final, nos ensina mais sobre o desejo de saber do que sobre o saber em si.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

O buraco sem fundo chamado WhatsApp




Há dias em que me pego pensando se o WhatsApp é mesmo um aplicativo de mensagens ou um portal interdimensional que suga o tempo, a paciência e, às vezes, a sanidade. Basta um segundo de distração — um café, um olhar pela janela, um suspiro — e lá vem ele vibrando de novo, com aquele plim insistente que parece dizer: “Não se iluda, ainda há algo a resolver!”. São mensagens que pedem, cobram, informam, lembram, perguntam, reenviam e atualizam. É como se o universo inteiro tivesse decidido se comunicar comigo ao mesmo tempo, e todos achassem que seu assunto é urgente.

Há o aluno que manda o trabalho, o mesmo que, cinco minutos depois, reenvia “a versão atualizada” — como se o tempo de leitura fosse elástico. Há quem peça confirmação de leitura, quem se desculpe por não vir à aula e quem diga que mandou mensagem e não recebeu resposta (como se o silêncio fosse uma ofensa pessoal). E eu ali, tentando organizar o pensamento entre uma mensagem e outra, enquanto o WhatsApp parece rir de mim: “você achou que ia descansar? Que graça!”.

Vivemos uma era do pra ontem, do “vi que você visualizou”, do “responde quando puder (mas eu sei que você pode agora)”. É o culto da urgência disfarçado de comunicação. A conversa já não é mais diálogo, é maratona. A cada resposta, nascem outras dez perguntas. A cada esclarecimento, surge um novo pedido de explicação. O aplicativo virou o espelho da nossa ansiedade coletiva: o medo de esperar, de perder, de ficar de fora. É o imediatismo em forma de balãozinho verde.

E no fim, entre um “bom dia, prof!” e um “segue o arquivo revisado”, percebo que o WhatsApp é um buraco sem fundo — e nós somos os equilibristas tentando manter um pouco de sossego na beira do abismo digital. Ainda não inventaram um botão de “modo contemplativo”, mas eu sigo sonhando com ele. Até lá, sigo respondendo, rindo e suspirando, enquanto o plim ecoa, incansável, no fundo do meu bolso e, confesso, também na minha cabeça.

domingo, 2 de novembro de 2025

Trabalhar até cansar do cansaço: o drama de quem não sabe quando é fim de semana


Há semanas que não têm fim — e não falo das estações do tempo, falo do trabalho. A sensação é a de estar preso num looping infinito de tarefas, e-mails, WhatsApp, prazos e “só mais uma coisinha antes de dormir”. De segunda a domingo, o relógio marca horas que não cabem mais no corpo. Trabalhar muito virou o novo normal, e o descanso, ah, o descanso... Eu tento negociar com o tempo, mas ele é um chefe implacável. 

No sábado, em vez de curtir o friozinho e a chuva, chegou mais um artigo para avaliar antes de eu conseguir finalizar o meu. No domingo, em vez de paz, me lembro dos comprovantes das passagens, dos certificados dos eventos e da prestação de contas para a pós-graduação. O café da manhã virou extensão da agenda (a xícara de café está sob a tela do PC) e a mesa do almoço, uma espécie de escritório improvisado (como e leio ao mesmo tempo). 

Enquanto os amigos postam fotos de churrascos, eu reviso os artigos (meus e dos orientandos) e respondo algumas mensagens. Há um momento em que o cérebro começa a pedir férias de si mesmo, mas o corpo, obediente, insiste em continuar.

E o pior: tudo isso parece sempre urgente. Cada tarefa vem disfarçada de catástrofe iminente — e não ouso dizer “faço depois” porque não vai dar tempo. O tempo livre virou um luxo, e a culpa, uma constante. É um tipo de exaustão que nem o sono resolve, porque mesmo dormindo o pensamento continua em modo “pendência”.

Mas aí chega a segunda-feira, e o ciclo recomeça, com a mesma convicção de quem acredita que agora vai dar tempo. Eu rio, mas é de nervoso — quando o corpo já desistiu de argumentar. Trabalhar demais é o esporte do professor. E o troféu? Uma pilha de tarefas cumpridas, 3 linhas novas no Lattes e um coração pedindo pausa.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Primeiro eu, se tiver mais tempo, eu também...porque pra mim é só o que importa



Às vezes, a vida nos apresenta aquele tipo de sujeito que caminha com holofote portátil. Tudo precisa apontar para o seu EU, como se o restante do mundo fosse apenas cenário de apoio. Ele narra o próprio respirar, converte qualquer conversa em desfile e coleciona plateias improvisadas. O curioso é que essa centralidade não ilumina: ofusca. Há brilho, há ruído, falta mundo.

Em volta dele, as experiências alheias viram gatilho para discursos autorreferidos. Você conta algo e recebe de volta um espelho: o assunto retorna para o centro, onde ele se mantém entronizado. A escuta vira performance, a presença do outro vira pano de fundo. O resultado é um cotidiano empobrecido, repetitivo, circulando sempre na mesma órbita, com o EU ocupando cada centímetro do espaço simbólico.

Há quem confunda intensidade com importância. O eu inflado fala alto, gesticula, ocupa, mas não se compromete com o encontro. Encontro supõe deslocamento, curiosidade, abertura. Para quem se coloca como medida de todas as coisas, deslocar-se parece ameaça. Assim se sustenta uma rotina de monólogos: ele é visto, ele é ouvido; ele não vê, ele não ouve.

Cuidar dos vínculos pede um gesto simples e raro: ceder lugar. Dar passagem para que o outro exista. Isso não apaga ninguém; ao contrário, amplia. Quando o “eu” aprende a dividir a cena com o “nós”, a conversa respira, os afetos se espraiam, a vida ganha profundidade. Talvez o primeiro passo seja desinflar a necessidade de centralidade e experimentar uma presença menos ruidosa, mais atenta, mais ética no cotidiano.

domingo, 5 de outubro de 2025

Um modo de estar


Voltar pra casa depois de uma viagem é como atravessar uma fronteira invisível entre o que ficou e o que volta. O corpo chega carregando cansaço, cheiros, restos de vozes, enquanto a alma vem mais lenta, distraída, ainda presa em paisagens, situações, conversas. Há um tempo em suspenso entre o fim da viagem e o início do retorno, um intervalo em que a casa parece observar quem chega.

A cada passo, reconheço o território conhecido. O som da porta, o cheiro onipresente do café, a luz que atravessa a cortina com a mesma delicadeza de sempre. Mas há uma leve estranheza — como se eu fosse visitante na própria vida. Estar longe faz com que o lar se revele em detalhes que antes passaram despercebidos: o tapete desalinhado, o livro esquecido, o copo fora do lugar. Tudo me observa com uma espécie de silêncio.

É nesse silêncio que a solidão aparece, serena. Não há ninguém me esperando, e percebo que talvez nunca tenha havido. Ainda assim, há algo de bonito nisso: voltar para si mesmo, sem plateia, sem expectativa. A casa, vazia, não cobra. Ela apenas acolhe, como um abrigo antigo onde cabem os restos de cada viagem e o sossego de cada regresso. A ausência de alguém me esperando já não dói; é constatação de um modo de estar.

E então olho em volta e respiro. Voltar pra casa é um reencontro com o próprio tempo. Abrir as malas, guardar lembranças e, aos poucos, retomar o ritmo de quem habita o próprio corpo. Nenhum abraço me espera, há a presença tranquila dessas coisas que aqui estão. E, no fundo, é disso que se trata: voltar, desfazer o caminho, e descobrir — mais uma vez — que estar só também é uma forma de chegar.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Quando o desleixo diz por/de você

Há uma forma de preguiça que não é física, mas simbólica. Não se trata do corpo que se recusa a mover-se, mas do sujeito que se recusa a implicar-se com aquilo que o convoca. Essa preguiça não aparece nos cochilos prolongados nem nas pausas extensas: ela se encarna no gesto apressado, no texto feito para constar, na entrega automática de algo que deveria ser próprio, mas que se transforma em mais uma formalidade a ser vencida. É a recusa de si no que se apresenta como exigência mínima de autoria.

A não implicação com aquilo que nos pertence — e que nos exige — tem consequências que ultrapassam o produto mal feito. Ela reorganiza os laços com o saber, com o tempo e com o próprio desejo. Quando o que se escreve é apenas o que é pedido, quando o que se entrega é só o suficiente para escapar da falta, o sujeito se afasta de si mesmo. Desinveste. Deixa o que é seu nas mãos de um outro imaginado que corrige, avalia, carimba. Como se o que está em jogo fosse sempre o outro e nunca ele. Como se o relatório, o texto, o percurso, não falassem também — e sobretudo — de quem os faz.

Há uma diferença entre não saber e não querer saber. A primeira se apresenta como limite, a segunda como recusa. Quando se escreve qualquer coisa porque se tem preguiça de refletir sobre o que se viveu, o gesto denuncia uma desistência do percurso, do processo, da travessia. Não se trata de erro gramatical nem de falta de técnica, mas de um certo cansaço de si, como se a própria experiência já não fosse digna de escuta, elaboração ou devolução. E isso diz muito mais sobre a relação com o próprio desejo do que sobre a relação com a tarefa.

Talvez seja mais fácil deixar para lá. Talvez pareça que ninguém vai ler com atenção, que tudo se perderá entre papéis e arquivos. Mas ainda assim, mesmo no texto mais breve e impessoal, há sempre um rastro. E é desse rastro que se faz a memória. Aquela que não precisa ser grandiosa, mas que ao menos carregue algum traço de presença. Porque no fim das contas, o que se espera não é perfeição, mas implicação. Que o sujeito se autorize a dizer — ainda que de forma provisória — o que foi o seu caminho. E que o faça sem preguiça de si.

domingo, 14 de setembro de 2025

O que importa é a qualidade dos instantes que cabem nos anos



O tempo que temos não é um estoque guardado numa prateleira, é um fio que se desenrola sem pausa, sem manual de instruções e sem devoluções. A vida não entrega extrato bancário com saldo de anos restantes, só a conta corrente do tempo de agora. É nesse espaço curto entre o ontem e o amanhã que nunca se garante que a gente precisa decidir o que vale viver.

Há quem viva acumulando promessas e adiando alegrias, como quem guarda vinho caro para um brinde. O tempo é mais malandro que isso. Ele não pede licença, não avisa quando muda de marcha, apenas segue. E nós, ao ficamos esperando demais, acabamos sendo passageiros distraídos, reclamando do percurso sem notar a paisagem.

O curioso é que a vida insiste, mesmo nos dias mais banais. Há uma pulsão alegre que se manifesta em coisas pequenas: a risada torta, o café bem tirado, a música que gruda no ouvido e muda o humor. Talvez viver seja aprender a fazer festa com essas miudezas, porque o grande espetáculo pode até não acontecer. A força está em continuar, em seguir inventando motivos para não se entregar ao enfado.

E se sobra a pergunta sobre quanto tempo resta, talvez a resposta seja outra: o que você quer colocar dentro desse tempo que sobra? Porque não é a quantidade de anos que importa, é a qualidade dos instantes que cabem neles. O relógio corre, e a única tática possível é rir de vez em quando da pressa dele, abrir espaço para o inesperado e, quem sabe, viver como se cada dia fosse uma pequena edição limitada.

sábado, 13 de setembro de 2025

Nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo...




Há um vão que nenhuma conquista preenche, nenhuma companhia dissolve, nenhuma viagem substitui. Nem que eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo (versos cantados por Djavan em Seduzir) — porque esse fundo não é feito de ausência concreta, mas de uma falta constitutiva, aquela que nos funda como sujeitos desejantes. É da ordem do impossível preenchimento. E quanto mais bebemos do mundo tentando calar esse vazio, mais ele nos lembra que não se trata de sede, mas de estrutura.

A psicanálise já nos sussurra isso desde Freud: somos constituídos por uma perda inaugural, algo que não tivemos e que, paradoxalmente, nos move. Lacan nomeou isso com precisão: o sujeito é efeito da linguagem e nasce pela entrada no simbólico, isto é, pela castração simbólica, pela perda, pela renúncia ao gozo pleno. O que nos falta não é o mar — é a coisa que nunca tivemos, mas que seguimos rodeando com palavras, com gestos, com amores. É o desejo que brota justamente porque nunca será saciado.

Aceitar essa incompletude, no entanto, não é se entregar à melancolia. É, talvez, o início da liberdade. Porque quando deixamos de procurar o que nos completaria, abrimos espaço para criar com o que temos: restos, traços, equívocos e repetições. O fundo que carregamos não precisa ser preenchido — ele pode ser habitado. E nesse habitar, podemos escutar o que nos falta não como tragédia, mas como ritmo. Um ritmo que nos lembra, a cada onda que passa, que somos feitos de falta, sim — mas também de linguagem, de gesto e de invenção.

sábado, 6 de setembro de 2025

Saúde e boas leituras!

Vinho & Literatura soa elegante, quase como se cada gole fosse acompanhado de uma citação francesa sussurrada ao ouvido. Mas, convenhamos, a grande área de Linguística e Letras não vive só de vinhos. Se quisermos brincar, dá para imaginar uma verdadeira carta de bebidas acadêmicas. Por exemplo, a cachaça combinaria perfeitamente com a Linguística Histórica: forte, rústica e cheia de memória — cada gole trazendo à tona as raízes da língua, lá no latim já quase esquecido, mas ainda presente na garganta.

A caipirinha, por sua vez, poderia ser o par ideal da Sociolinguística. Do mesmo jeito que a bebida mistura limão, açúcar, gelo e cachaça, o estudo sociolinguístico junta classes sociais, regiões e escolaridades. Cada gole muda conforme o equilíbrio dos ingredientes, assim como cada fala depende do contexto, da situação e da relação entre interlocutores. Já a cerveja, tão democrática, cairia como uma luva na Gramática Descritiva: acessível, variada e plural, porque sempre tem um estilo para cada gosto, seja IPA, pilsen ou stout — assim como há um jeito legítimo de falar em cada região ou grupo.

Agora, se quisermos ousar, o corote seria perfeito para a Análise do Discurso. Barato, marginal, muitas vezes visto com desconfiança, mas que nos mostra uma potência de sentidos no lugar onde circula. Afinal, o discurso também vem marcado por ideologias, por posições e por um certo efeito de escândalo quando ocupa espaços não autorizados. Já o suco se encaixaria na Linguística Aplicada: nutritivo, variado, mas muitas vezes subestimado. Quem nunca ouviu um “é só suco” — assim como o “é só ensino de língua” — sem perceber a complexidade que se esconde ali?

E ainda poderíamos pensar no café, companheiro inseparável de quem escreve artigos até altas horas, perfeito para a Crítica Literária: denso, amargo, mas que mantém o sujeito acordado para ir fundo na análise. O quentão, por sua vez, seria a Literatura Popular: quente, coletivo, cantado em roda. E a água? Essa seria a Gramática Normativa: necessária, insípida, transparente — e obrigatória. O bom mesmo é que, entre um gole e outro, descobrimos que beber e estudar têm algo em comum: ambos produzem efeitos de sentido, e a ressaca, às vezes, é inevitável. Saúde e boas leituras!

domingo, 31 de agosto de 2025

Da Série: Conto Mínimo

Na penumbra do quarto empoeirado, havia uma cômoda antiga que guardava mais do que roupas esquecidas: em sua gaveta do meio, repousava um bicho-preguiça, acomodado como se sempre tivesse pertencido àquele espaço estreito. Entre camisetas enroladas, ele encontrava o ninho perfeito como quem desafia o relógio. As meias viravam travesseiros, os lenços, mantas improvisadas, e o cheiro de madeira antiga misturava-se ao calor de sua presença. Nada ali se movia rápido; o ranger da gaveta era a única interrupção da quietude. Havia, naquele esconderijo improvável, uma lição escondida sobre o repouso e a calma.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O macaco vermelho e a jaula de Paul Preciado

Franz Kafka escreveu, em 1917, o conto Um relatório para a Academia. Nele, um macaco chamado Pedro Vermelho narra como, após ser capturado e trancado em uma jaula, percebeu que sua única saída era aprender a linguagem e os costumes humanos. Não se tratava de libertação, mas de sobrevivência: ou permanecia na jaula da sua animalidade, condenado à morte, ou aceitava a outra jaula — a subjetividade humana, repleta de regras, domesticação e artifícios.

Paul B. Preciado retoma essa metáfora e a desloca para pensar sua própria condição de homem trans e para questionar os limites da subjetividade que o mundo normativo impõe. Assim como Pedro Vermelho, Preciado não romantiza a passagem de uma prisão para outra. Reconhece que, ao adentrar a “normalidade” exigida — seja pela medicina, pela lei ou pela psicanálise —, não se conquista liberdade, apenas se troca de gaiola.

O que Preciado denuncia é a violência invisível dessa troca. O macaco de Kafka não escolhe tornar-se humano; faz isso porque é a única forma de escapar da morte. O sujeito trans, por sua vez, é frequentemente empurrado para modelos identitários pré-fabricados: ou se adequa às normas médicas e jurídicas para existir socialmente, ou permanece preso na jaula da marginalização. Em ambos os casos, a liberdade aparece como miragem: sempre há uma estrutura que delimita o possível.

Nesse movimento, Preciado fala a partir da sua “jaula escolhida e redesenhada”, lembrando que toda escolha é atravessada por condições históricas e políticas. Ele não reivindica uma saída definitiva, mas expõe a precariedade do espaço em que habita: um lugar de invenção, mas também de vigilância. A jaula pode ter sido reformada, ampliada, pintada de outras cores — ainda assim, continua sendo uma jaula.

A força dessa metáfora está em desestabilizar a ilusão da liberdade plena. Assim como o macaco vermelho, o sujeito contemporâneo vive entre grades que mudam de forma, mas não deixam de aprisionar. O gesto de Preciado não é o de lamentar, mas o de dar visibilidade a esse jogo de capturas e adaptações. O que parece emancipação pode ser apenas outro modo de confinamento, outra armadilha disfarçada de porta aberta.

Ao retomar Kafka, Preciado nos convida a pensar sobre nossas próprias jaulas. Quais são aquelas em que entramos para sobreviver? Quais redesenhamos para torná-las habitáveis? E até que ponto acreditamos ser livres quando apenas mudamos de cela? Talvez seja esse o desafio: aprender a reconhecer as grades sem nos deixar enganar pelas tintas novas com que tentam escondê-las.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O desejo é um turista inquieto



O desejo é uma criatura caprichosa. Não se contenta com pouco, mas também não se satisfaz com muito. Você pensa que finalmente encontrou o objeto perfeito — o emprego dos sonhos, a viagem ideal, o par de sapatos que vai resolver sua vida — e logo percebe que, depois do primeiro suspiro de alegria, sobra aquele restinho irritante de insatisfação. O desejo é assim: um hóspede que não paga aluguel e ainda deixa a louça suja.

Lacan dizia que o desejo não encontra objeto que o esgote. Traduzindo: ele é um turista inquieto, que nunca desfaz as malas porque já está de olho no próximo destino. É como aquele amigo que come um pedaço de pizza e, antes de engolir, já está de olho na sobremesa. O objeto nunca basta. Sempre escapa um fiapo, um resto, algo que nos empurra para a próxima busca.

E é justamente por isso que o desejo é indestrutível. Não adianta tentar matá-lo com compras, casamentos, cursos de yoga ou cerveja artesanal. Ele vai sempre se reinscrever, travestido de novo capricho: ontem era uma casa, hoje é uma viagem internacional, amanhã, amanhã sabe lá deus o que será.

O engraçado é que, nesse jogo, o desejo tem uma vitalidade invejável. Nós ficamos cansados, endividados, frustrados, mas ele? Ah, o desejo acorda cedo, toma café reforçado e já está pronto para mais um dia de insatisfação criativa. Se há uma certeza nessa vida, não é a morte nem os impostos: é que o desejo nunca cessa de desejar.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Envelheço na cidade

Hoje, na fila do mercado, uma senhora me convidou a passar para a fila dos idosos. Por alguns segundos, fiquei entre o espanto e o riso: será que já estou com essa marca no rosto, nos gestos, no jeito de esperar? Entrei, claro, mas saí dali com uma pergunta que não me largou: o que significa envelhecer em meio ao barulho e à pressa da cidade?

A cidade nos mede o tempo de outra maneira. Cada esquina é uma lembrança, cada rua guarda uma versão de nós mesmos que já não existe. E, de repente, a fila preferencial deixa de ser uma previsão distante para se tornar realidade concreta: um espaço que nos é cedido, não pela gentileza da pressa, mas pelo reconhecimento da passagem do tempo.

Envelhecer na cidade é aprender a ocupar esse espaço novo. Não como concessão, mas como direito. É olhar para os muros grafitados, para os ônibus lotados e para os jovens que correm sem parar e perceber que já estivemos ali, que ainda estamos, mas de outro modo. É continuar caminhando entre vitrines e semáforos, sabendo que o corpo desacelera, mas que a memória se expande.

Na verdade, talvez envelhecer na cidade seja justamente isso: deixar-se atravessar por ela de outro jeito. Em vez de lutar contra a pressa, acolher a pausa; em vez de se perder na multidão, descobrir novas formas de presença. Porque se há algo que a cidade nos ensina, com todas as suas filas, ruídos e surpresas, é que o tempo não é inimigo, mas companheiro de percurso.

Quando o remendo vira rotina

Há momentos em que a gente compra coisas que não precisa tanto assim. Um objeto, uma roupa, um jantar fora, algo que chega como promessa de ...