domingo, 10 de maio de 2009

Longe dos olhos, perto do coração (texto)

Todo amor
Todo amor dorme
Numa caixa, numa gaveta, numa sala escura
Que às vezes visito
Como hoje num sonho
Como Deneuve entre os pombos
A abençoar seus queridos
E o tempo, senhor dos enganos
Apaga os momentos sofridos
E aqui te traz vez por outra
A passar umas horas comigo
Ficamos nós dois entre sonhos
De amores novos e antigos
Te beijo no escuro silêncio da sala
Que às vezes visito
(Herbert Vianna)

Depois de ler o seguinte comentário "Também estive com minha mãe, e não foi pessoalmente e não foi por e-mail e não foi por carta e não foi pelo skipe ou pelo msn. Foi pelo pensamento.... pelo coração" que me tocou profundamente, a ponto de me deixar atônito enquanto eu preparava a minha aula de segunda-feira, fiquei absorto em pensamentos sobre as distâncias físicas e espirituais com as quais convivemos.
A escolha entre o trabalho (em outra cidade, estado ou país) e a conviência mais próxima com amigos e familiares é determinante nesse processo. Somos, por força da necessidade, "obrigados", de certa forma, a deixar para trás (não apenas metaforicamente e com perdão do tracadilho) o passado. E por lá ficam amizades, convivências, amores, encontros que não acontecem mais, mas que estarão (como mencionado naquela poesia de Quintana "Uma Alegria para Sempre" postada aqui neste blog) de algum jeito, em nós, ainda que não se possa conscientemente compreendê-los.
Tenho estado, pelo pensamento e pelo coração, muito próximo de muita gente que anda muito longe: seja pela geografia, seja pela condição de vida e morte. E hoje depois do comentário da minha amiga me encontro perdido nessas lembranças.
Não tive tempo razoável para pensar sobre essas questões, fui escrevendo à medida que as ideias vinham a cabeça e talvez mais tarde eu precise refazer alguns pontos. Sei que a distância entre nós e os amigos de infância e adolescência é natural por diversos fatores. Mudamos muito e essas mudanças nos levam para outros interesses, mas onde ficam guardadas as lembranças esquecidas desses velhos tempos? Em que bolsos, em quais gavetas e armários perdidos elas se encontram? Gracinha, Juarez, Eliane, D. Nenén, Marquinhos e Tia Elba, Tia Élia, Sebastian, Gina, Cátia, Bárbara, Suzana, Zequinha, Rômulo, Chiquinho, Vó Daysa, Vó Carolina, Tia Maria, Gilvan, Teresa, Suely, Iracema, Lucimara e tantos outros.

sábado, 9 de maio de 2009

Quem conta um conto (texto)

O conto abaixo de Caio Fernando Abreu foi um descoberta importante faz alguns anos. Ele me toca profundamente, a ponto de não conseguir ler sem me emocionar. Sei que é uma postagem longa e que foge ao padrão aqui do DO AVESSO, mas certamente que vai valer à pena ler. Aposto! Boa leitura.

Linda, Uma história horrível (Caio Fernando Abreu)


Linda, uma história horrível


Caio Fernando Abreu

Para Sergio Keuchguerian
"Você nunca ouviu falar em maldição
nunca viu um milagre
nunca chorou sozinha num banheiro sujo
nem nunca quis ver a face de Deus."
(Cazuza: "Só as mães são felizes")


Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.

Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.

— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.

Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.

— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa.

Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.

— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.

— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.

— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete.

Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:

— Uns noventa e cinco, então.

Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar:

— O quê?

— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.

Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café?

— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.

As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.

— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café.

—A senhora não devia. Café tira o sono.

Ela sacudiu os ombros:

— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.

A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.

— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.

Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.

— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.

— Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.

Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:

— Me dá o fogo.

Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:

— Bonito, o isqueiro.

— É francês.

— Que é isso que tem dentro?

— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.

Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.

— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.

Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.

— Vim, mãe. Deu saudade.

Riso rouco:

— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?

Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:

— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.

Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.

— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.

— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?

Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.

— E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?

Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.

— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.

Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.

— Deixa eu te ver melhor — pediu.

Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.

— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.

— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias.

— Perdeu cabelo, meu filho.

— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro?

— Cigarro, mãe. Poluição.

Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.

— Mas vai tudo bem?

— Tudo, mãe.

— Trabalho?

Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:

— Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.

— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?

A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:

— Coitada. Mais esclerosada do que eu.

— A senhora não está esclerosada.

— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.

— A Cândida morreu, mãe.

Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.

— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?

— Comi no avião.

Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.

— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta?

— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.

— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.

Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.

— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.

Ela voltou a olhar o teto:

— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.

— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?

— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.

— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.

— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.

— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.

Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.

— E por quê?

— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.

Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:

— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.

Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.

— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.

Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.

Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.

— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.

Julho é o mês das mães (texto)

Estou em Cascavel e Heloísa está em Rio das Ostras. Amanhã, assim como tantos outros dias, não iremos nos encontrar. Não lhe darei um abraço, nem beijo e nem um presente. Muito menos iremos almoçar juntos. São mais de 1500 quilômetros entre nós. Acho uma pena não poder estar com ela. Não pelo instituído "dia das mães", porque sabemos que quem realmente ganha alguma coisa é o comércio (não estou dizendo com isso que não sou afetado pela data. Tanto sou que estou aqui escrevendo um pequeno texto sobre isso), mas por achar que ela ficaria bem feliz com minha presença. E eu com a dela.
Nos falaremos pelo telefone e eu direi a ela que sinto muito em não estar por lá e sei exatamente o que ela vai me dizer (já foram tantos "dias iguais"). Escrevendo assim, parece que tudo é bem tranquilo e racional. Não é. Mas quando não se tem outro jeito, o jeito é o que se tem.
Nos encontraremos em julho e, por isso, julho é o mês das mães. Terei a oportunidade de fazer o que faria amanhã se com ela estivesse.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Pensamento para todos os dias

NÃO ADIANTA SAIR DO MATO, SE O MATO NÃO SAI DE DENTRO DE VOCÊ. (B. H. Dall Molin)

Explicando o inexplicável (texto)

Técnicos da Prefeitura do Rio de Janeiro são flagrados urinando na rua em "Choque de Ordem". Acho que talvez seja necessário explicar o que significa "Choque de Ordem", vamos lá: é o nome dado pela atual equipe do prefeito eleito da Cidade do Rio, Eduardo Paes, para as medidas adotadas, na cidade, em relação à organização e ao "bom" funcionamento dela.
Dentre as medidas da atual equipe estão: limpar a cidade, destruir construções irregulares, proibir a venda de produtos ilegais, retirar os moradores de rua, aumentar o policiamento da cidade etc.
Feito o parêntese, continuo com aquele papo de urina na rua...
O Secretário de Obras da cidade pede desculpas à população e diz que os técnicos serão advertidos, no entanto, em março, o estudante Thiago da Silva Rocha Paz, 18 anos, foi detido, pelo Secretário Municipal de Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, por urinar na rua no desfile do Monobloco, no Centro. Thiago foi levado à 5ª DP (Gomes Freire), autuado e liberado.
A lei penal prevê detenção de três meses a um ano ou multa para ato obsceno, mas a pena pode ser alternativa, como doação de cestas básicas.
"Faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço" traduz bem os dois pesos e duas medidas da equipe do atual prefeito.
Não estou justificando o ato do estudante. Acho que urinar na rua não é nada educado, além do cheiro desagradável que isso provoca. Mas todos nós sabemos que não existem banheiros químicos para serem usados em parte alguma da cidade, nem mesmo quando há uma grande concentração de pessoas, como é o caso dos desfiles de blocos na cidade do Rio de Janeiro.
Ou a prefeitura disponibiliza os banheiros ou faz como o Secretário Municipal de Obras, pede desculpas e adverte a população.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Noite de horror - Parte II (texto)

(esquerda abaixo) Victoria Beckham numa mistura de deusa grega com galinha d'angola; Rihanna apareceu com, ah sei lá, acho que disfarçada para que o namorado violento não a reconhecesse; A estilista Stella McCartney foi com aquilo ali, uma espécie de macacão recortado com tesoura de picote; Leighton Meester de vaso chinês!
(a direita acima) Miranda Kerr depois de um confronto com skinhead; Karolina Kurkova não teve tempo de escolher um vestido, foi de camisola mesmo. Anne Hathaway pegou às pressas o vestido de Fabiana Karla (a Dra. Lorka) e deu um jeitinho; Rachel Bilson se enrolou com gazes verdes; Emma Roberts, por sua vez, pegou o abajur que estava sobre o criado-mudo e foi.

Uma noite de horror (texto)

(esquerda) Uma coisa é não entender nada de moda. Outra coisa e não conseguir ver moda naquilo que vejo. Festa de famosos em Nova Iorque: um show de mal gosto.
Jessica Alba vestida de capa de botijão de gás; Gisele Bündchen pronta para a Praça; Raquel Zimmermann vestida de pufe e, finalmente Madonna, homenageando a crise, vestida de papel crepom.
(direita-abaixo) Eva Mendes solvou a noite. Renee Zellweger deve ter cuidado de uma criança antes da festa e olha o resultado: verde-diarreia. Mary-Kate Olsen de cigana de rua. Ashley Olsen de Fantasminha Pluft.
Pensou que foi só isso? Tem mais.

Tudo vira Bosta (texto)

Deu no Globo.com: Mais um escândalo no SENADO FEDERAL!!!! Uma comissão técnica especial do Senado encontrou contratação de serviços de limpeza com valor quase 100% superior ao preço médio do mercado. Os relatórios sobre os contratos de quatro empresas foram entregues na semana passada ao primeiro-secretário do Senado, Heráclito Fortes (DEM-PI), que deu publicidade aos documentos nesta terça-feira (5).

De acordo com o relatório, a Secretaria Especial de Informática (Prodasen) contratou em 2005 uma empresa para realizar serviços de limpeza de forma emergencial (sem licitação) por R$ 269,6 mil mensais. Provavelmente para limpar toda sujeira dos senadores.
A contratação estava autorizada inicialmente para a modalidade de pregão. O órgão promoveu uma pesquisa junto aos interessados na licitação e encontrou como preço médio o valor de R$ 136,2 mil mensais para o mesmo serviço, 97,9% a menos do que o valor do contrato firmado posteriormente.
O valor começou a subir quando o Prodasen, sem autorização da primeira-secretaria, decidiu mudar o modelo de licitação de pregão para contratação emergencial. Foi feita novamente uma pesquisa e encontrado o preço médio de R$ 210 mil, valor abaixo dos R$ 269,6 mil efetivamente pagos.
Neste mesmo contrato foi observado que a fixação dos salários para auxiliares e encarregados de limpeza estão acima dos previstos para a categoria. Por fim, a comissão recomenda que seja evitado o expediente de contratações emergenciais, a elaboração de uma nova licitação por meio de pregão, a redução de 50% dos funcionários para a limpeza e o compromisso de que os serviços deverão ser contratados com base na área física a ser limpa, com estimativas de custo por metro quadrado.

Outros contratos

Em outro contrato auditado pela comissão também foram encontrados valores pagos acima dos de mercado. No caso de uma empresa contratada por R$ 244,6 mil mensais para realizar serviços de arquivo, a comissão afirma que contrato semelhante na Casa paga valores menores por funcionário, embora não especifique o quanto menos.
Neste caso, a comissão sugere a revogação do contrato para buscar “salários mais vantajosos”. Propõe também a redução de 25% do efetivo e a supressão de categorias que tenham atribuições similares a exercidas por funcionários do quadro do Senado.
Nos outros dois contratos analisados, os problemas são menores. Um deles trata de serviço de vigilância de apartamentos funcionais e da residência oficial do Senado e foi reajustado no ano passado. A comissão sugere a unificação dos contratos da área de vigilância.

No outro contrato, de prestação de serviços de manutenção do sistema elétrico e de cancelas eletrônicas, foi encontrado um pagamento a maior de R$ 195 mensais desde outubro de 2007, para o qual é pedido ressarcimento.
Não podemos perder de vista que TODOS eles estão lá nos representando. Todos foram escolhidos democraticamente através dos nossos votos.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Uma alegria para sempre (Mário Quintana)

(para Helena Quintana)
As coisas que não conseguem ser olvidadas
continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre
onde as datas não datam.
Só no mundo do nunca existem lápides...
Que importa se - depois de tudo - tenha "ela" partido
casado, mudado, sumido, esquecido, enganado,
ou que quer que te haja feito, em suma?
Tiveste uma parte da sua vida que foi só tua e, esta,
ela jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que, a
o contrário do que pensas,
fazem parte de tua vida presente
e não do teu passado.
E abrem-se no teu sorriso mesmo quando,
deslembrado deles, estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto deves à ingrata
criatura...
A thing of beauty is a joy for ever
- disse, há cento e muitos anos,
um poeta inglês que não conseguiu morrer.

(80 anos de poesia/Mário Quintana: organização Tânia Franco Carvalhal. - 7 ed. - São Paulo: Globo, 1996)

A vida sem poesia é uma bosta! (texto)

Gosto muito de poesia só que faz muito tempo (muito mesmo) que não leio nada. Hoje no almoço com uma grande amiga (Jacicarla) fui lembrado de que poesia existe e que a vida sem poesia é uma bosta. Minha vida está uma bosta faz muito tempo.
Quase todo o meu dia é dedicado ao trabalho: ler livros (teóricos), preparar aulas, ler trabalhos de alunos, corrigir provas, preparar exercícios, corrigir exercícios, ler dissertação, projetos, teses, escrever projetos, atender alunos, pensar no jornal do vestibular e na prova do vestibular, pensar no vestibular indígena, falar com professor, escrever texto para possíveis pubicações, preparar palestras, seminários, pensar em congressos, pensar e escrever textos para esses congressos, participar de bancas de avaliação dos colegas, reuniões, participar de bancas de estágio probatório de colegas, ler livros (teóricos) e tudo outra vez.
Tenho pouco tempo dedicado ao que realmente gosto de fazer (não que eu odeio o meu trabalho, mas quando a gente apenas trabalha ele começa a ocupar a vida de forma cansativa).
Gosto muito de conversar e se possível uma conversa que me faça rir. Eu rio bastante, mas já ri muito mais. Hoje em dia eu rio pouco porque quase sempre estou mal humorado por causa do trabalho. Gosto também das aulas de francês, mas me pergunte quando foi a última vez que fui à aula? Acho que a professora não se lembra mais de mim.
Hoje passei o dia na universidade: cheguei bem cedo para duas aulas de linguísticas (7h50min). Sempre chego cedo. Depois das aulas fiquei lendo alguns projetos para à tarde poder falar sobre eles.
Passei a tarde inteira sentado diante de uma plateia com mais dois professores fazendo comentários sobre os projetos de mestrado de 6 alunos. Saí da universidade às 17h. Exausto, sem energia nenhuma, só com vontade de deitar e dormir umas quatro semanas.
Eu preciso urgentemente dar um jeito na minha vida ou ela fica do jeito que está. E do jeito que ela está não está me agradando.

domingo, 3 de maio de 2009

Lugar de homem é na cozinha (texto)

Gosto muito de bacalhau. Minha avó, mãe de minha mãe é casada com um português (cujo nome não é Joaquim) e por isso bacalhau na casa deles era prato semanal, como a feijoada nas quartas ou sábados lá no Rio de Janeiro. Eu podia ter escrito que o meu avô é português, mas como não era ele quem cozinhava achei melhor fazer aquela curva explicativa. Uma coisa é gostar de bacalhau outra é saber fazê-lo.
Depois que minha avó deixou de cozinhar, só comia bacalhau ou na casa dos amigos ou em algum restaurante (minha mãe sempre foi um desastre na cozinha). Mas é claro que achava isso vergonhoso, (não a minha mãe ser um desastre, mas depender do outro para comer alguma coisa) porque julgo não saber fazer quaisquer pratos somente por conta da preguiça. Basta um livro de receito para fazer um prato. É claro que ir à casa dos amigos ou a um restaurante é bem mais prático.
Tenho um grande amigo chamado Marcelo Iran e ele me ensinou faz alguns anos uma receita de bacalhau fácil e deliciosa. Vamos a ela.
Bacalhau ao Iran
Ingredientes:
1 quilo de bacalhau; 1 dúzia de ovos; 2 quilos de batata; 2 brócolis; 2 potes de requijão; 1 litro de azeite extra virgem.
Praparando:
cozinhar os ovos e cortá-los em rodelas; cozinha os brócolis e usar apenas a flor; praparar um purê de batata com o requijão; cozinhar o bacalhau até dessalgá-lo e depois desfiá-lo; bacalhau desfiado e dassalgado misturar numa panela com meio livro de azeite extra-virgem (primeira etapa).
Montando o prato:
uma camada de ovos, sobre essa camada, uma camada de brócolis, sobre essa, uma de bacalhau (ad infinutun); prato preparado, despeje sobre as camadas o meio litro que sobrou de azeite (é isso mesmo, muito azeite); sobre tudo isso o purê de batatas feito com requeijão (cubra tudo como se estivesse colocando sobre um bolo a cobertura).
Forno:
40 minutos de forno e pronto.

Posso garantir que é muito bom! Nâo tem como dar errado ou ficar ruim. mesmo. Experimentem!


sábado, 2 de maio de 2009

Augusto Boal (1931-2009) (texto)

Boal foi fundador do Teatro do Oprimido: teoria e prática que interpela o homem em ator. Segundo o diretor, "O Teatro do Oprimido é o teatro no sentido mais arcaico do termo, pois todos os seres humanos são atores porque atuam...". Metodologia internacionalmente conhecida que alia teatro a ação social.
Um dos únicos homens de teatro a escrever sobre sua prática, formulando teorias a respeito de seu trabalho, tornou-se uma referência do teatro brasileiro e internacional. Principal liderança do Teatro de Arena de São Paulo nos anos 1960.
Escreveu O Teatro do Oprimido e Outras Políticas Poéticas, 1975; 200 Exercícios para Ator e o Não-Ator com Vontade de Dizer Algo através do Teatro, 1977; Técnicas Latino-Americanas de Teatro Popular, 1979; Stop: C'est Magique, 1980; Teatro de Augusto Boal, vol. 1 e 2, 1986 e 1990; Jogos para Atores e Não Atores, 1988; Teatro Legislativo, 1996.
Escreve dois textos autobiográficos, Milagre no Brasil, em 1977, e Hamlet e o Filho do Padeiro, em 2000.
Entre outros significativos títulos e prêmios angariados por Boal no exterior, destacam-se o Officier de l'Ordre des Arts et des Lettres, outorgado pelo Ministério da Cultura e da Comunicação da França, em 1981, e a Medalha Pablo Picasso, atribuída pela Unesco em 1994. Em 2009, é nomeado embaixador mundial do teatro pela Unesco.
Fiz, na época da graduação, no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), uma oficina sobre o Teatro do Oprimido com o diretor e naquela época pouco tinha ouvido falar sobre ele e a sua obra, mas nos encantamos com a possibilidade de estar no palco ouvindo tantas ideias saindo de uma só cabeça: "Ser cidadão, meus companheiros, não é viver em sociedade: é transformar a sociedade em que se vive!"

Uma aposta que se perde!

A gente aprende a lidar com a ausência quando só há ausência. Se a presença é escassa, se não há reciprocidade, se é preciso implorar a comp...